Wednesday, November 21, 2012

Monday, October 11, 2010

Índice

Apresentação


Bem sabemos que não existe a Verdade. Nem por isso devemos descartar a busca pelo sentido. Ao menos desde Nietzsche, sabemos que o sentido não existe de maneira imperativa, deve ser criado. No entanto, se não o criamos, ou se o criamos de maneira leviana, todos os valores se equivalem, tanto faz a vida como a morte, e até o fascismo pode ser justificado. O relativismo mal compreendido tende ao niilismo, o qual o pensador alemão, longe de defendê-lo – como supõem as leituras superficiais – combateu arduamente. Não há critérios absolutos para a criação do sentido, mas cada premissa traz em seu bojo consequências, e não considerá-las em sua imanência incorre no que podemos chamar de má-fé. Os argumentos não devem ser forçosos, as articulações devem dar conta dos movimentos a que se propõem. No presente livro, haverá certamente contradições, mesmo propositais, pois as antinomias muitas vezes são mais precisas do que as certezas. Ainda assim, combaterá algumas posições que se demonstram incapazes de propiciar saltos maiores. Talvez seja esse o critério que melhor nos guie: defender o pensamento que dê conta do maior número de situações que a experiência nos traz. Para bem filosofar, é preciso coragem e vigor que, infelizmente, nem todos demonstram possuir. Como compensação, temos na arte um poderoso auxílio para suportarmos a angústia da maior de nossas tarefas. A criação do sentido requer que se combine às empreitadas filosóficas um espírito artista.
            
Não se disfarça nestas aqui o ímpeto de romper paradigmas. Paradoxalmente, o livro é tão mais disruptivo quanto mais destrona supostos rebeldes. As rupturas não valem por si mesmas, não valem apenas pelo radicalismo. É preciso ver em nome de quê se provoca um levante, não apenas sair atirando. A decadência das grandes narrativas, que marca a mentalidade pós-moderna, não pode ser um festival aleatório de assassinatos – morte da História, morte da filosofia, morte da arte, etc. A destruição é parte de qualquer processo de transformação, e deve ser apoiada quando abrir possibilidades instigantes. Infelizmente, a abertura para devires promissores não aconteceu com a frequência desejada no caso da arte pós-moderna – ao menos não em muitas de suas manifestações mais características. A retirada da Verdade, passo importante apesar de arriscado, quando mal entendido pode dar lugar a comportamentos cínicos, por vezes sofistas e por vezes desesperados. Abundam os oportunistas sob pele de cordeiro e os niilistas no sentido mais fraco. No caso das artes plásticas, o debate se concentrou na questão da morte da pintura, cujos desdobramentos são abrangentes e cujas dificuldades requerem análises cuidadosas. Antes de mais nada, é preciso admitir que o problema existe: mesmo que, após a fase mais radical dos anos 60 e 70, a pintura na prática tenha sobrevivido, é preciso ter a clareza de que uma ala muito influente da arte pós-moderna ainda a repele. Não se coloca impunemente uma obra tipicamente pós-moderna ao lado de uma pintura: há uma agressão, há um ataque violento que a sensibilidade deve perceber e questionar. O prejuízo não apenas à pintura como técnica específica, mas à potência da arte em geral, prolonga-se em muitos casos recentes, seja ou não adotado o termo “morte da arte” em meio aos discursos.

Também é preciso admitir que, por mais que alguns dos aspectos da arte contemporânea pareçam caricatos, desde os anos 60 se impuseram como uma tentação irresistível para os artistas e para o meio. O fato de terem aparecido simultaneamente em diversas regiões endossa a constatação de que tais desenlaces, durante um período, foram inevitáveis, gostemos deles ou não. Na França, Yves Klein teria sido, por um lado, o último grande artista moderno e, por outro, o primeiro a fazer do vazio uma obra, abrindo caminho para a arte conceitual pós-moderna. Nos Estados Unidos, tivemos, da Pop Art em diante, uma intensa reação ao expressionismo abstrato (especialmente a Pollock), tanto na teoria quanto na prática. No Japão, o grupo Gutai antecipou o cultuado Fluxus na proposta de dissolver a arte no cotidiano – e, ironicamente, os japoneses eram extremamente reverentes a Pollock, provando que pontos de partida aparentemente opostos levariam a direções semelhantes. Isto fica ainda mais evidente quando consideramos que em todas essas regiões, Marcel Duchamp se sobrelevava como referência máxima, ao passo que no Brasil, Hélio Oiticica o rechaçava terminantemente, encontrando em Mondrian e nos construtivistas russos seu caminho para o pós-modernismo. Movimento irrefreável, mas, como veremos, nem sempre como uma evolução. 

            Os ataques à arte se mantêm mesmo quando não verbalizados com todas as letras, e faremos aqui um esforço para deslindar as posições em disputa. É leviano acreditar que uma conciliação acrítica seja sustentável. A experiência e o pensamento mostram que a diplomacia indulgente com atores extremamente antagônicos está corroendo a possibilidade de que a arte ainda possa criar qualquer sentido. O que se propõe com estes artigos não é desvendar o sentido da arte, que cada um deve encontrar por si mesmo, mas demonstrar algumas premissas para que o diálogo entre arte e vida aconteça. Para tanto, deve-se conceder à arte maior autonomia do que se lhe tem permitido - o que de modo algum significa o isolamento da arte em torre de marfim, mas uma relação de alteridade com a vida. Para haver relação é preciso mais do que um, jamais uma indistinção escorregadia, que acaba por sufocar espaços de desejo. Se a arte está em xeque, também a vida está, mas é justamente o niilismo que procuraremos superar. Realizemos a destruição produtiva, liberando uma energia que a sabedoria poderá aproveitar.

Jogos de espelhos


    Bem e mal, corpo e alma, céu e terra, certo e errado. Somos induzidos a dividir o mundo em duas categorias, em dois campos opostos que permanecem incólumes um em relação ao outro, de modo a manter um ideal de pureza. Eis um padrão mental bastante redutor, mas que infelizmente permanece arraigado. Muitos dos filósofos e artistas mais interessantes nada mais fizeram do que dedicar suas vidas à árdua tarefa de ensinar as pessoas a contarem além do número dois, e continuamos precisando de novos pensadores que possuam uma vocação semelhante. Não se pode abrir espaço para qualquer avanço intelectual significativo enquanto o maniqueísmo não for efetivamente desacreditado, enquanto o dualismo não for substituído por uma visão de mundo que admita a pluralidade.


            Contudo, ao menos uma divisão em duas contrapartes se justifica, e talvez seja aquela que nos vicia nessa pequena matemática. A concepção dualista originária, muito provavelmente, é aquela que distingue o eu do não-eu, o que está dentro e o que está fora de mim. Não a obtemos logo ao nascer, mas em um processo que começa por volta dos seis meses de idade e jamais atinge a plenitude. Começamos a vida como um amontoado caótico de sensações, sem a menor compreensão de si e incapaz de assimilar os estímulos externos. Não podemos esquecer que a relação entre eu e não-eu é dinâmica, nada tem de estanque, pois os pares se caracterizam pela troca ininterrupta. Aquilo que está dentro e o que está fora do sujeito se entrelaçam: o ar que se respira, a comida que se engole, as fezes que saem, a cultura que pressupõe sociedade, a percepção que advém do entorno, as bocas que se juntam no beijo. Basta um pouco de atenção ao processo para entender que nada tem de binário, que o fluxo é marcado por frações e algoritmos os mais diversos. Infinitas combinações são possíveis, desde que aceitemos um certo limite insuperável. Jamais, por exemplo, a expressão de peito aberto pode ser literal a ponto de o coração sobreviver fora da caixa torácica. A pele, cheia de poros, atravessada constantemente pelo ar e pela umidade, ainda marca uma fronteira entre um dentro e um fora de mim.

Devemos ter isso em mente ao pensar na crítica pós-moderna de arte visual, que nas últimas décadas, propagou a aproximação, a indistinção ou a fusão entre arte e vida. De Duchamp, cem anos atrás, para cá, tem sido defendida a ideia de que "arte é tudo aquilo que um artista chama de arte". Um aperto de mão, um espirro, um objeto encontrado ao acaso, o olhar para uma paisagem - a própria realidade se converteria em obra de arte por meio da assunção de um artista, que "assinaria" um pedaço de mundo. Fala-se inclusive na morte da arte, que de tão misturada à vida, já não precisaria sequer existir. Já que a arte surgiu muito depois do aparecimento do homem, já que houve um início de sociedade organizada antes da separação entre arte e vida, ela não pode ser considerada uma necessidade intrínseca, sendo portanto plausível falar em seu desaparecimento


`Por outro lado, uma combinação de cores no perímetro de uma tela, em uma pintura, estaria em um campo ilusório, fora do espaço da vida, portanto seria uma arte menor, de alcance reduzido. Muitos defendem que a cidade, a política, a memória, o indivíduo, eu e você é que deveríamos nos transfigurar em pura arte – pois só assim se estenderia a atividade artística a seu máximo, em seu pleno vigor utópico. Argutamente, aquilo que mais evitam é atribuir qualquer definição à arte, no entanto parecem aceitar a ideia de uma circunscrição para o conceito de vida, afinal consideram que um trabalho de arte poderia estar mais próximo ou mais distante desta. Estranha topologia, em que possa haver um suposto deslocamento da obra de arte para o interior da vida. Eis um dos passos mais curiosos da retórica pós-moderna, e talvez o que mais valha a pena investigar. Não se trata, simplesmente, de uma ocupação da vida como espaço físico, pois esculturas e pinturas sempre se construíram sobre materiais tangíveis. Rodin tirou o pedestal da escultura, colocou-a no mesmo chão que o do observador, mas os pós-modernos asseveram que foi pouco. Sua Porta do inferno não é penetrável, é ilusionista, nos convida a entrar na imaginação do artista. A arte contemporânea nos incita a recuar, a nos afastar de qualquer paraíso ou inferno aludidos, para que, supostamente, encaremos a vida de frente, sem maiores devaneios. A arte se desmaterializa para que seu espaço conceitual seja o mesmo espaço em que concebemos a vida.

Cabe nos perguntar se é desejável tal síntese, mas antes, ainda, devemos questionar se ela é possível. Em outras áreas que não o da arte visual, aprendemos a ver a cidade como signo (semiótica), os indivíduos como significantes (Lacan) ou os meios de comunicação como extensões do ser humano (McLuhan). As luzes dos faróis no trânsito, a saudação gestual dos adolescentes, o fascínio por um corpo atraente, uma notícia na televisão sobre a guerra no Iraque: não há nada, na experiência humana, que não seja permeado pela linguagem, que não possa ser lido e interpretado como um texto. Os animais talvez estejam mais próximos da realidade nua, porém nós não temos uma única experiência que não seja mediada pela cultura, onde cada elemento não se relacione com um vasto repertório de referências. Em suma, a concretude do real não é mais alcançável para nós em sua pureza. As palavras formam sentidos, e as imagens chegam a nós repletas de informações determinadas pelo contexto histórico-social. 



                                          

Aceitar arte como um conceito válido não deve ser considerado recuo ou falseamento, pois está implícito que se trata de uma convenção, e é como tal que sempre foi percebido. Toda obra de arte é uma hipótese: imagine uma porta, imagine este inferno; sinta-o queimar sua pele – nada disto é proposto sob discursos de verdade, mas em sua contramão. Arte é justamente o que se desvia dos discursos de verdade, por isso é tão temida. Sempre que se tenta eliminá-la, há que se perguntar que discurso de Verdade se pretende reforçar em seu detrimento. Mais problemática do que a hipótese da arte, portanto, é a conceitualização da vida, já que esta é ainda mais inapreensível. A particularidade da vida é não ser efetivamente pensável – só se pode senti-la. Suas extremidades nos escapam: não temos memória de nosso nascimento, e a morte é mistério insondável. Para tocar a vida, para sentir sua pele, temos de recorrer a artifícios. Na falta de instrumento melhor, temos recorrido à arte. A arte surge da constatação de uma falta, surge no diálogo sempre falho porém intenso com a própria falta. Não interessa que a arte se desfaça da ilusão porque remete ao nascimento e à morte, ao que escapa da vida, porque tangencia  bordas impossíveis.



Eu e Outro


Não empregaremos aqui a vida como conceito delimitável. Assumimos que não há como abarcá-la, nem mesmo como tocar sua pele, a não ser em relação com sua alteridade. A arte, por sua vez, não tem uma existência para além do artifício, não possui essência própria. A rigor, arte não existe, mas se situa em relação com a vida. Não é diferente em nossa constituição subjetiva: só existe um eu em função do não-eu, do Outro. Sucintamente, podemos dizer que este Outro, no primeiro momento de um recém-nascido, é a mãe, pois é no jogo de espelhos entre um e outro que o bebê pode conceber seu próprio corpo. O recém-nascido é um caos indiferenciado, não se percebe como corpo, antes como uma miríade de sensações que não faz contorno nem se relaciona com o entorno. Neurologicamente e fisicamente imaturo, o bebê humano só percebe a si mesmo a partir do olhar da mãe, que progressivamente lhe confere unidade. A primeira ficção de nossas vidas se dá neste processo, no filho que a mãe imagina. Lacan dizia que o bebê é suposto pela mãe, pois o ser humano não está dado a priori. Tal ficção, transmitida através do olhar, da prosódia da fala e dos cuidados maternos, nos acompanhará, inconscientemente, por toda a vida. É claro que não são dados meramente biológicos, estão sempre imbuídos de cultura.

Hoje, nos meios acadêmicos, condena-se tanto a arte ilusionista, e se esquece do quanto é importante a ilusão, a começar por essa primeira, que é gerada pelo olhar materno. A fantasia que a mãe tece para o bebê permite que ele se desenvolva, evita que se torne autista. Entretanto, por mais que sejamos gratos àquela que nos deu à luz, nossa felicidade e nossa tragédia é que crescemos, buscamos outras relações, outros amores, tecemos objetivos, tentamos cuidar da vida por conta própria. Neste percurso, uma das maiores dificuldades é perceber que essa primeira ilusão, ainda que fundante, é problemática, porque não se assume enquanto ilusão. Além da mãe, há, certamente, os mais variados encontros com os signos humanos, com outras pessoas, com a linguagem adquirida, com os códigos sociais. Muitos desses discursos serão, segundo a psicanálise, substitutos da fala da mãe, na medida que visam nos confortar, organizar nossa subjetividade, nos atribuir identidade. Na maior parte das vezes, são palavras impostas, assumindo-se assertivamente como a Verdade da vida.

Não é apenas a fala da mãe, portanto, que se instala em nós como tatuagem, que nos determina, que nos molda o corpo, que se dispõe como espelho onde procuramos nosso próprio reflexo. Não há poder que se sustente sem discurso, há palavras impostas por toda parte – de nossos primeiros cuidadores, geralmente mãe e pai, aos parentes, amigos, professores, ideólogos, sacerdotes, chefes, e, como nos lembra Nietzsche, até mesmo os filósofos e cientistas pretendem atribuir contornos à vida de maneira pouco flexível. Considerando que não podemos simplesmente atirar ao lixo toda a linguagem humana, com todos os signos adquiridos, o discurso que pode dinamizar e flexibilizar todas essas palavras impostas será justamente o discurso artístico. É a arte que melhor dribla o fluxo impositivo dos signos, por ser um espelho que se assume como espelho. O segredo é que a arte se posiciona obliquamente para nós, de modo a refletir a linguagem, mas sem que apareçamos no reflexo ou que o Outro dê as caras. A arte nos revela o processo de formação da subjetividade, quando, obliquamente, faz entrever nossa noção de vida como produto de um complexo jogo de reflexos. Arte é um espelho que, ao se posicionar em ângulo oblíquo, reflete a linguagem em seu delírio. Com isso, podemos tecer uma noção de vida que não diz respeito a uma formatação redutora, esquivando-nos, ainda que momentaneamente, dos códigos emitidos para este fim. Não há experiência humana que substitua esse jogo, nem há melhor instrumento para colocar em suspensão a linguagem da vida. Para sentir a pele da vida, é preciso criar do modo mais livre sua exterioridade.

Se, por um lado a arte encanta, por outro desencanta, pois sua potência se assume como potência do falso. Magritte dá o nome de Espelho Falso a uma de suas principais pinturas, onde um olho reflete o céu. Toda obra de arte que nos interessa é um olho que nos reflete o infinito, e no entanto rejeita o olhar hipnótico, assume que o reflexo é falso. Nem por isso a beleza desaparece: em um espelho falso, as cores não são diretamente as do céu, estão em nossos olhos, mas nos põem em contato com a alteridade, nos tornam cientes de que as palavras impostas são todas voláteis.

                                      Magritte, Espelho falso


 Os suportes tradicionais, seja a pintura, a escultura, o poema, ou o romance podem ser percebidos como arte, mas não são seus formatos que determinam a experiência artística. Tudo o que é percebido como alteridade em relação ao fluxo corrente de signos, tudo o que assume distância estratégica para espelhar, obliquamente, a linguagem da vida, exerce as funções principais da arte. Alteridade porosa, que possibilita o diálogo. Desde que surgiu, cada obra de arte é a manufatura desse espelho. Artificial, sem dúvida, mas hoje nos é imprescindível.


Marcando posição


Se, como propõem os pós-modernos, não houver mais qualquer separação entre arte e vida, o resultado não pode ser a derrocada do ilusionismo, posto que impossível, mas uma equivalência de todas as expressões que, de uma maneira ou outra, virtualizam a vida. A rigor, seria impossível distinguir grande arte de decoração, design, moda ou os piores programas de tevê. Melhor dizendo, destruídos todos os espelhos, não haveria qualquer motivo sério para supor que os gestos de um artista mereceriam maior atenção do que os gestos de um apresentador de auditório. Sejam videomakers ou performers, se não saltam para o campo da arte, estão no mesmo plano que os apresentadores. Destacados, os apresentadores de TV recorrem a uma mediação explícita (ou da câmera ou do próprio status do artista), e trabalham para capturar o olhar. Não existe arte em essência, portanto não há qualquer diferença a priori. A única possibilidade que os críticos têm proposto para colocar o artista em vantagem é a moral. Algum limite, como se vê, continuou sendo buscado, mas em vez de um limite qualitativo para o que se queira denominar arte, que ao menos seria compreendido como linha imaginária, tomou-se uma separação brusca entre o Bem e o Mal. Uma linha divisória das mais autoritárias e intelectualmente frágil. É preferível traçar uma linha entre a linguagem corrente da vida e a linguagem de sua própria alteridade, mesmo sabendo que a localização dessa linha é subjetiva, pessoal, até mesmo escorregadia.

Os corolários de nossa empreitada dependem dessa convenção, a de supor que existem criações que merecem ser vistas com lentes diferentes das que usamos para enxergar a vida cotidiana, e outras tantas que não. Não abandonamos o terreno da convenção, porém lançamos suposições que nos permite movimentações mais proveitosas. Aquilo que, através de recursos sofisticados de linguagem, colocar sob tensão nossas percepções cotidianas, poderemos chamar de arte. Por outro lado, nem toda combinação de formas, mesmo que competente, merece o mesmo status. Sequer toda música, ainda que a música seja a mais abstrata das expressões estéticas, deve ser considerada arte. Um jingle de propaganda tem que ser visto com frieza, com olhar crítico e desapegado. A estética está ali, mas as intenções não são artísticas, pois seu propósito foi demarcado de antemão. Se arte é aquilo que não tem uma função fechada, também não pode sevir ao mercantilismo, não pode ter a circulação de dinheiro como seu objetivo primeiro. Aí é que muita gente se confunde, é preciso saber olhar para algumas expressões bem trabalhadas no quesito formal, mas poder dizer: “Isto não é arte”. Contudo, para isso não é preciso cair no moralismo. Tudo aquilo que responde a um jogo de cartas marcadas, a trânsitos pré-estabelecidos, não propicia alteridade significativa para a vida, apenas à manipulação da vida. Uma telenovela fraca, que não passe de isca para que a audiência morda os intervalos comerciais, não interessa ser vista como arte, pois não é algo que nos permita diálogos dos mais dinâmicos com nossas vidas. Melhor dissecá-la, pensá-la como um produto, como algo subordinado a motivações das mais corriqueiras e restritas. Portanto vida, e não a sua parte mais interessante.

Na maior parte dos casos, podemos entender os programas de tevê como informação corrente, cotidiana – mesmo quando se tratar de ficção. O julgamento caso a caso fica por conta de cada espectador, não serei eu a despejar regras absolutas, contudo o contato frequente com a grande arte tende a sofisticar a percepção da linguagem. Novelas comerciais, filmes enlatados, programas reciclados – tudo que é kitsch está preso demais às leis do cotidiano, a começar pela demanda do mercado. Rapidamente, se percebe sua estética diluida, sua pressa em agradar a um público muito grande, inespecífico, diante do qual não se correm grandes riscos. Exceções à parte, não há na indústria cultural muita capacidade para fazer vibrar desde fora o universo pessoal de alguém bem informado. Para tanto, é preciso envergadura, é preciso por para deslizar todos os discursos de verdade. Quanto mais culto é o espectador, mais um produto simplista lhe parecerá previsível, discurso repetido, ilustração demagógica, e tanto mais sofisticada terá que ser a arte para colocar todos esses discursos em ângulo oblíquo, deles se desviando para superá-los, desde fora. O que se mede na arte é a capacidade de estabelecer diálogos com a vida. A arte não vale por si mesma, mas pelo que oferece à vida. Pelos seus prolongamentos, pela potência que desperta na vida. Por trás dos significantes manifestos, é uma enorme boca que deve se abrir, grande o bastante para oscular a vida, enquanto lhe sopra segredos no ouvido.

O modernismo foi interessante enquanto soube sacudir o espelho ou chamar a atenção para sua manufatura. Seus sucessores, no entanto, se perderam com a pretensão de que o espelho deveria ser retirado. A intenção dos pós-modernos, teoricamente, era neutralizar todo e qualquer tipo de criação estética, justamente para que ao assistirmos um comercial de TV, ao pegarmos uma embalagem ricamente colorida ou mesmo ao nos depararmos com horas e horas de ficção enlatada, saibamos não nos iludir. O resultado é que os pós-modernos retiraram apenas o espelho da arte, mas os atos-reflexos permaneceram, tal como os incorporamos desde crianças. Não é à toa que o discurso da arte contemporânea tantas vezes assume estridentes tons de verdade, convicções autoritárias sem auto-crítica. Não se permitem um olhar de fora. Tentam forçar uma univocidade. Pior: da arte tal como a entendíamos, só mantêm o distanciamento, e é a realidade inteira que fica distante, transposta para o espaço mental da arte. Em vez de uma pintura ou um filme, são os dados mais concretos que são empurrados para o lado de lá do espelho, a própria vida se virtualiza. Estimulam um olhar distanciado para as questões políticas, para a materialidade, para as relações cotidianas... Feitiço contra o feiticeiro, falseiam a realidade, tanto ou mais que os telejornais que dizem detestar.

Pode soar sarcástico, mas para ninguém é uma constatação muito simples, do ponto de vista psicológico, entender que há algo concreto lá fora, que há pessoas reais sofrendo. Os seres humanos só têm acesso a uma representação do mundo real, não ao mundo em si. Todo contato com o mundo é mediado pela mente (em parte consciente, em parte inconsciente) onde a linguagem chega antes do que o corpo. Não é tão simples entender que o outro não é um fantasma, apertemos ou não a sua mão. Tampouco é simples assimilar que os problemas sociais não são espetáculo para burguês ver, que nas tragédias há mais que palavras ou imagens. Ainda mais difícil é entender que alguma coisa pode ser feita, que alguma interferência nessa realidade é possível. É muito frequente acharmos que estamos aceitando o outro, quando na verdade estamos lidando apenas com uma projeção de nosso eu com outras roupas.

Aí está o equívoco em se obrigar a arte a estar sempre colada ao estado de coisas, sem autonomia, sem um espaço próprio. Por mais fundamental que nos seja o Outro, é preciso não se alienar nele. Não adianta criar obras moralistas e com isso pensar que se superou a indústria do entretenimento. Trata-se do erro mais frequente de muitos artistas pós-modernos. Só vamos longe o suficiente se percebermos que até o politicamente correto nos corrompe. A abnegação ás vezes pode ser uma recusa em aceitar a alteridade. A totalização acrítica – uma equivalência cega, onde afago o outro porque projeto nele meu reflexo, mas não o vejo. Aceitando a arte em sua alteridade, entendemos que é de esguelha que se aprende a admitir a existência do outro. No embate demasiado frontal ou na fusão – ou seja, quando se recusam os ângulos oblíquos – vemos apenas nosso reflexo na pupila alheia, seja do amigo ou do inimigo. Melhor uma ética da alteridade ensinada pela estética.  

A obra de arte genuína perdura, resiste ao tempo, está acima do mero consumismo. Opõe-se ao processo de reificação generalizada, desde que se mostre intensa e sincera o bastante para superar os produtos da indústria cultural. Toda obra de arte consistente revela, por si mesma, a fragilidade espiritual do mero mercantilismo. Não ao se travestir de seu oposto, mero sinal invertido que apenas reforça visões binárias e caricaturais. Não ao ostentar um corpo oco plasmado pela força contrária; mas por ser uma das poucas atividades humanas capazes de evidenciar que é possível ultrapassar as limitações de sua época.