Monday, October 11, 2010

Distâncias variáveis – amor, arte, vida



Tanto a arte quanto o amor são a um só tempo delicados e violentos, poderosos e fugidios. Um dos ensaios mais interessantes sobre o amor foi escrito por um poeta, A dupla chama: amor e erotismo. A tese, de Octavio Paz, é justamente que os escritores e artistas souberam abordar o amor com tanta ou maior precisão do que os filósofos, cientistas ou psicanalistas. Paz esboça uma História do Erotismo a partir da poesia, desde a Antiguidade até nossos dias, passando pela poesia provençal, pelo pensamento oriental, a influência árabe e o surrealismo, demonstrando como a noção de amor variou nas diferentes sociedades. Curiosamente, o aparecimento do amor como um ideal e como estilo de vida teria ocorrido tardiamente - segundo Paz, somente na França do século XII. Mais precisamente na Gália, uma comunidade de poetas revolucionou nossa concepção amorosa ao cortejar suas damas com uma distinção sem precedentes, elaborando uma etiqueta da sedução onde a mulher é valorizada a cada momento da cortesia. Até então, teria havido mais atração e fascínio do que amor propriamente dito. Platão usava a palavra “amor” em O banquete, mas tratava-se do encantamento pelas belas formas, tão pouco afetivo que era passível de se substituir pelo amor à filosofia. Tampouco os demais gregos individualizavam seus parceiros, contemplando-os como belos objetos de desejo. Segundo Paz, os gregos erotizavam seus parceiros, mas não os amavam. 

Como precursor da poesia provençal, contudo, há um obra que Paz destaca como o primeiro grande poema amoroso: A Feiticeira, de Teócrito, do século III a. C. Nele, uma mulher chamada Simeta prepara encantamentos para trazer de volta Délfis, que a abandonara após um breve porém intenso romance. Desventurada, ela sabe por terceiros que Délfis fora visto com uma outra. O rancor faz com que seu feitiço adquira caráter dúbio. Simeta pede auxilio a seres mágicos pelo retorno do amado aos seus braços, mas alternativamente deseja sua morte. Ao lançar um ramo de louro às chamas, amaldiçoa: “Que assim se incendeie sua carne”. Se Délfis não voltasse, ela teria à mão um veneno para matá-lo. 

Não deixa de ser instigante que este seja a primeiro momento onde Paz reconheceu amor, tal como o entendemos, na literatura universal. Jamais antes se havia retratado, com tamanha intensidade, “um dos grandes mistérios humanos: a mistura inextricável de ódio e amor, despeito e desejo.” Nem em Safo, nem em Meleagro há essa ambivalência, essa oscilação, que nos permite identificar o sentimento com todo seu vigor e todo seu perigo. Octavio Paz postula que todo amor, mesmo o mais feliz, é trágico. E não poderia deixar de ser. No amor, estamos cindidos, reconhecemos nossa falta, nossa incompletude, e dependemos de outro para nos considerarmos realizados. O mito do Andrógeno, das metades que se complementam, é um ideal perturbador: o encaixe é sempre imperfeito; se nos extasia, também nos castiga. As mais ricas histórias românticas, seja Romeu e Julieta, Tristão e Isolda ou Riobaldo e Diadorim, sempre apontam para essa impossibilidade. O mesmo se dá na vida: por maior que seja o desejo de nos fundirmos ao outro, nos frustramos com a imperfeição dos encontros. Não podemos nos saciar porque as almas jamais se tocam tão profundamente quanto ansiamos.

Um pré-requisito de Paz para que se possa falar propriamente de amor é que se reconheça o parceiro como sujeito. Os gregos não tinham uma noção de indivíduo tão clara como a nossa. Alteridade supõe subjetividade, e por mais sagazes que fossem os gregos, a introspecção moderna lhes era estranha. O valor de um homem se concentrava no que ele realizava na polis, em sua postura política, em sua habilidade na guerra, em suma, na sua utilidade para a comunidade. Os prazeres sexuais dos gregos não levavam em conta o outro como algo muito diferente de um objeto, por mais cobiçado que fosse. Somente com a ascensão da cultura romana, onde a mulher obteve um papel mais independente que na Grécia, o parceiro pôde ser valorizado a ponto de vislumbrarmos algo do que viria a ser o amor. Em Catulo, diferentemente dos poetas gregos, encontramos o desafio, o amor como transgressão e o cíume. “Catulo expressa em breves poemas, lúcidos e dolorosos, o poder de uma paixão que se infiltra pouco a pouco na consciência até paralisar nossa vontade”. Só se percebe amor onde se percebem seus perigos.

A tragédia inerente é que o desejo de Um se impõe ao apaixonado, mas a descontinuidade é anterior ao Um. Tentamos nos aproximar pelas fissuras, buscamos encaixes, mas apenas fugazmente nos sentimos verdadeiramente unidos. No mais, são desentendimentos. Os parceiros tentam reconhecer um ao outro, mas têm apenas recursos frágeis para tatear o ser do outro: palavras, gestos, imagens. Comunicam-se, mas isto já significa que são mais de um. O amor e o ódio de Simeta são um sentimento só. Amamos e odiamos nosso parceiro, pois ele nos expande e nos limita. Expande-nos ao nos tornar mais que um, fazer transbordar, multiplicar; e nos limita porque não faz Um, frustra-nos com o não-todo. Um sexo penetra o outro, e além da pequena violência do ato, a agressão maior está em precisar da contraparte para sentir o êxtase. Este outro que talvez ouça meus suspiros, que goze comigo, mas traz seu próprio Real, inacessível para mim. Por mais próximos que estejamos, somos impossíveis um para o outro.



É mesmo este o título de uma escultura magistral de Maria Martins: Impossível. Duas figuras vagamente antropomórficas, uma inclinada para a outra, imiscuindo-se por dezenas de tentáculos. Uma figura masculina, outra feminina, ambas tentando engolir e ser engolidas, tentando anular a divisão dos corpos. Maria Martins não deixa de sugerir algo de aterrorizante nessa tentativa. Por mais carinhosos que tentem ser, os dois seres têm sua monstruosidade. O amor assusta, uma vez que sobrepõe-se ao eu. Apesar de todos os enganos e obstáculos, aceitamos a aventura amorosa, pois a intensidade é inebriante.

Vaginas dentadas

Fazendo a ponte, creio que há semelhanças entre a relação de dois amantes e entre arte e vida: as duas partes trocam sinais entre si e se alimentam uma da outra, no entanto permanecem independentes, por mais que se tente fundi-las. Boa parte dos artistas contemporâneos sofre com a dificuldade de entender isso, acarretando, como veremos, as mais desagradáveis consequencias. Pode-se dizer que devido a uma ideia muito empobrecida do amor, até mesmo o maior pintor do século passado deixou de ser apreciado pela crítica de arte contemporânea.

Picasso foi boicotado por críticas feministas, por alegarem que em seu trabalho a mulher é degradada. Com todo o respeito à causa feminista, não posso concordar. As mulheres nas telas de Picasso são dilaceradas, deformadas, reviradas do avesso. Porém, tal agressão às formas deve ser considerada junto ao impulso originário do cubismo, uma inquietude que não se limita a olhar placidamente para objeto algum. Se em suas telas a mulher se contorce, significa que o artista estava muito interessado por elas. Há amor ali, só não é tão platônico como certos pós-modernos gostariam. Pode-se notar, aliás, que os homens que Picasso retrata tampouco são dominadores seguros, são seres atônitos que se deformam junto com as parceiras. Até mesmo seus minotauros, por viris que sejam, mostram-se apavorados diante de sua tarefa, a de se animalizar no sexo sem perder a consciência humana. Somos inevitavelmente fragmentados, e buscamos interpenetrações com amantes que estão sempre nos rasgando com seus próprios estilhaços, por prazeroso que seja. As mulheres picassianas de vaginas dentadas não são frutos de uma vingança misógina, mas a expressão do horror de se perder no outro. Tal horror não é machista, está presente em toda entrega sentimental.



                     

De fato o espanhol não foi um exemplo de cavalheiro monogâmico com nenhuma de suas esposas, mas não se trata de abuso quando não há inocentes. É ingenuidade pensar que as parceiras não sabiam com quem estavam, ou que seu mau comportamento não as tenha fascinado. A etiqueta do politicamente correto não se concilia com acordos eróticos, e quem vê de fora não pode ter a pretensão de compreender a dinâmica de um casal. Quem acha que a alcova precisa de regras claras ou de coerência ideológica não sabe nada em matéria de amor. Foracluir Picasso nada mais é que covardia sentimental.

Para esquentar a discussão, alguns podem, inversamente, indagar se o amor segundo Picasso não seria tímido. Que a coragem consistiria justamente em derrubar todas as defesas, em aceitar sem qualquer receio os espinhos do parceiro e celebrar a dor como um parto às avessas, dois voltando a ser Um. O amor em seu extremo impossível, fusional, vulcânico e fatal. Para não ficarmos apenas nas idealizações, analisemos Império dos Sentidos, o estrondoso filme de Nagisa Oshima. O fato de a história ser verídica nos permite refletir sobre as relações humanas sem medo de que a grande questão do filme nos pareça inverossímil. No início de seu romance, Sada é uma mulher submissa, não apenas por ser o suposto sexo frágil, mas por trabalhar como gueixa para seu patrão, Kichizo. A relação que no início era comercial logo se converte em paixão, e eles passam a copular tão freneticamente que perdem o interesse pelo mundo exterior. As cenas do filme são lindas, o sexo aparece com toda explicitude, mas não excitam o corpo menos do que a mente. Até mesmo as cenas que poderiam ser consideradas vulgares, como a introdução de um ovo na vagina de Sada, são conduzidas por Oshima sem gratuidade, com senso estético apurado. Contudo, tomados por uma paixão arrebatadora, os amantes se tornam tão dependentes um do outro que a agressividade deixa de ser contida. Quanto mais próximos chegam da fusão, mais Sada se torna ativa e Kichizo passivo. Impulsiva, sem deixar de ser dependente do amado, ela quer guardar um pedaço dele consigo, e ameaça cortar seu pênis. Ele, por sua vez, parece já não se importar com nada a não ser agradá-la. Kichizo perde a autonomia, mas também Sada. Ambos se unem em um furor que os sobrepuja, culminando na decepação do membro como clímax e distensão. O episódio real chocou o Japão, mas foi interpretado pelo diretor como a trajetória de um amor muito radical, sem freios. Octavio Paz não comenta o filme, mas não hesita em dizer que todo amor tem algo de mortal. Não é à toa que os franceses chamam o orgasmo de petite morte. A lição que fica é a de que alguns mais, outros menos, todos nos contemos, não amamos até as últimas consequências, quando nos contentamos com a pequena morte e evitamos a morte literal.


As damas no tabuleiro




Talvez Marcel Duchamp não se submetesse aos arroubos de uma Sada, mas não era de seu feitio impor o falo. Por mais que houvesse provocação em suas obras, o fato é que ele era bem contido – quase o oposto de Picasso, que, fobias a parte, era tão ativo na cama quanto no ateliê. Os biógrafos de Duchamp descrevem-no quase assexuado, pois mesmo seus affairs declaravam ter relações mais intelectuais do que físicas com ele. Se por um lado era considerado charmoso, por outro não parecia se apegar às namoradas, ou expressar por elas forte desejo. É ponto pacífico que a estética da indiferença que Duchamp criou para as obras se refletia em sua vida afetiva. Sem querer descartar sua importância, deve-se entender que suas provocações também eram contidas – cerebrais, elegantes, jogadas de enxadrista. Mesmo o urinol aparece como signo – imaculado, limpo, impessoal, uma abstração intelectual – sendo uma das maneiras menos corpóreas da História da arte de se aludir aos órgãos sexuais. Em uma de suas maiores obras, O Grande Vidro, Duchamp desenha diversos celibatários como peças engrenadas, contemplando uma inalcançável noiva, todos compondo uma grande máquina masturbatória. Por mais interessante que seja o resultado, denota uma clara recusa à virilidade. Nem é preciso dizer que as feministas que depreciaram o macho espanhol não tiveram problemas em admirar Duchamp. Todo artista contemporâneo que se preze deve considerar seu legado, mas deve também atentar para um certo elogio ao celibato que está em sua biografia e em sua obra.

Seu comportamento mudou quando conheceu Maria Martins. Apesar de ela ser casada, ambos se arriscaram na tarefa impossível. Tudo indica que Duchamp se apaixonava pela primeira vez, com quase sessenta anos. A brasileira era mesmo uma mulher diferente de qualquer outra que ele tivesse conhecido. Artista talentosa, inteligente e dotada de uma beleza incomum, Duchamp se sentiu afetivamente e eroticamente conectado como jamais antes. O fato nos interessa, especialmente, na medida que transformou sua visão de arte. Duchamp saiu de sua habitual apatia e passou a trabalhar na obra mais exuberante e libidinosa de sua carreira: Etants donées. Aliás, o corpo de Maria Martins serviu de molde para a mulher que jaz saciada na grama da instalação. O corpo não se resume mais a um signo, está ali. Desfalecido pelo orgasmo, quando finalmente houve encontro amoroso, quando houve coragem para roçar a morte. Não a morte da arte, que esta nos desvia dos grandes embates, mas a que pressentimos em cada petite morte. Na mão da mulher, uma lamparina, ao fundo o som da cachoeira – o cenário é luminoso, intenso, mas só temos acesso olhando por uma fresta... 

É surpreendente que o criador dos celibatários pudesse dar tal reviravolta, criando um trabalho repleto de sensualidade. Não importando se sua obra anterior era melhor ou pior, o episódio nos permite traçar um paralelo entre a relação que se trava entre eu e Outro e aquela que se dá entre vida e arte. Salta aos olhos que sua antiga posição resguardada e fria, antiartística, deu lugar a um trabalho de quem expressamente ama a arte. Nem mesmo os duchampianos mais dogmáticos poderiam insistir que ao final da vida Duchamp se mantivesse fiel à negação da arte. Em realidade, ele nunca foi avesso a uma arte potente, mas isso só ficou claro em sua última obra. O aquecimento libidinoso provocado por Maria, ao transformar a equação eu-outro, não poderia deixar de afetá-lo na equação paralela vida-arte. 

Não há como acusar Duchamp de assassinar a arte. O retrato que faço dele parecerá forçoso para alguns, mas acho que é o que mais leva em conta seu histórico pessoal, com todas suas humanas contradições. Duchamp sempre amou a arte, porém como um romântico desajeitado, que não se sente à altura do objeto de desejo e por isso denega. Irmão de artistas e amigo de diversos outros, sempre esteve muito próximo e sempre lidou com arte, embora com precauções, recusando-se à entrega. O episódio Maria Martins nos dá motivos para crer que havia um desejo constante de se lançar mais luxuriosamente à estética, faltando apenas um impulso decisivo. Não há como tomar Duchamp por um militante da antiarte, como foram seus sucessores, pois ele não se empenhava no front, apenas se sentia foracluído. Era fascinado por Arte, só a combatia na mesma medida que a idealizava. O que ele lamentava era o “retiniano”, enaltecia a arte mais espiritualizada do passado. Ele era o celibatário, o platônico, sentindo-se incapaz de estar à altura, talvez por isso sua obra seja tão escassa. O contraste entre seu laconismo e a militância aguerrida de seus epígonos é grande demais para passar despercebido, não se deve mais tomá-lo pelo que fizeram dele. Pois quando Maria dá novo fôlego à sua libido, não só como homem mas como criador, ele encontra um novo impulso para se afirmar. Ainda assim, ele empregou vinte anos para realizar uma única instalação, o que nos dá ideia da importância que ele atribuía a cada obra, de sua dificuldade em se sentir potente, em não ser mais um celibatário diante da musa Arte.

Amor e arte

Cada obra de arte é uma mensagem amorosa dirigida à vida. Pode ser uma mensagem de arrebatamento, como em Werther de Goethe ou Turner; de abandono, como em Giacometti ou Beckett; de encantamento, como em Matisse ou Guimarães Rosa; de estranhamento atônito, como em Sartre ou Iberê Camargo; pode ser uma complicada discussão de relacionamento, como em Thomas Mann ou Godard; pode ser paixão violenta, como em Picasso ou Rubem Fonseca; anseio por amizade sensual que se problematiza, como em Miró ou Clarice Lispector, etc. É evidente que estamos falando em linhas muito gerais, pois cada obra tem idiossincrasias mais sutis. 

O que os grandes criadores fazem de importante é nos fazer desviar do Outro. O primeiro Outro é a mãe, ou um dos primeiros cuidadores, que, para nosso desespero, emite ecos em todos nossos relacionamentos futuros. Freud é detestado por dizer que a mãe é o modelo que buscaremos em todas nossas paixões adultas, o que de fato soa aprisionante, pois a princípio nos colocaria sob determinismo psíquico. Partindo dessa premissa, no entanto, ninguém mais do que Freud nos incita a recusar a situação edípica, a variar nas formas de se relacionar, obtendo escolhas mais livres. Uma das maneiras mais eficazes para se reformular nossa relação com o Outro é em contato com arte. O mérito da arte é não ter um destinatário específico ou um discurso unidirecional, escapando, portanto, do remetimento a um Outro pré-fixado. A arte enquanto não-vida toma todos os Outros e os revira, remodela, transforma. O movimento inercial encontra seu momento de suspensão, que aproveitamos para retraçar nossas coordenadas. A arte, ao se dirigir à vida, não cabe no que já estava ensinado, possibilitando uma reeducação sentimental.

A arte, longe de ser inútil, traz como grande benefício um senso de proporção dos afetos – seja intensificando-os, no caso de Etants Donnés, seja sublimando-os, quando necessário. No caso de Sada e Kichizo, por exemplo, o amor pelo Outro se tornou maior do que o amor pela vida. A frase “Eu não posso viver sem você” nos é bem familiar – se nós mesmos em algum momento não a dissemos, já ouvimos de um amigo, ou a tivemos na ponta da língua, quase nos escapando para ouvidos incautos. Por mais bela que seja a frase, não é nem um pouco libertária. Mais forte é aquele que se relaciona com o parceiro sem nele se anular, sem depender totalmente. Do contrário, permanece um eco que nos infantiliza. Somente na primeira infância não soubemos viver sem um Outro, quando os cuidados eram imprescindíveis para nossa sustentação física e mental. “Não posso viver sem você”, bem pensado, é egoísta e imaturo. Tivessem Sada e Kichizo ido mais vezes ao cinema em vez de siderar um no outro, não inspirariam Oshima para um ótimo filme, mas também não iriam até a morte no desespero pela fusão total. Fusão tão radical quanto pueril, pois remete à ligação quase total entre mãe e bebê, onde o resto do mundo não tem vez. 

Voltando aos antiartistas recentes, não seria também amor à arte o que os levaria a querer matá-la? Talvez. O amor é inseparável do ódio, todo bom poeta sabe disso, ao menos desde Teócrito. O impulso impossível do amor sempre traz notícias da morte, pois a dissolução de um no outro é um apagamento de si. O desejo se direciona ao Outro, é vontade de que Outro me deseje – no limite, borra-se a fronteira entre os pares, borra-se o que os individualiza. Os antiartistas alegavam querer borrar, apaixonadamente, a fronteira entre arte e vida. Talvez tivessem a mesma disposição de Sada: roubar a potência da arte, arrancar o que ela tem de penetrante, de modo a se igualarem vida e arte em um orgasmo final e fatal. Um dos maiores paradoxos humanos é que o ápice do desejo conduz ao não-mais-desejar.

Seria isso mesmo, os antiartistas queriam matar a arte, arrancar seu coração ou seu falo e transpô-lo para a vida? Por trás de sua aparente frieza formal, teriam eles a intensidade de um ânimo arrebatador, ainda que infeliz? Difícil compreender tais relações. Talvez alguns antiartistas fossem descontroladamente apaixonados, ao passo que outros estivessem em uma relação desgastada com a arte e desistissem de qualquer afeto, e outros apenas  estivessem seguindo o que se tornou moda. Alguns, sim, devem ter agido contra a arte com “sentimento”, com “sinceridade”, com frenesi. Mas isso nunca bastou, nem no amor nem na guerra. Em um grande conto de Milan Kundera, o jovem Fleischman “pensava que o amor tem apenas um critério: a morte. No fim do verdadeiro amor existe a morte, e só o amor no fim do qual existe a morte é amor”. No entanto, Kundera inclui esse drama entre os Risíveis Amores, alertando-nos desde o título para não seguirmos os conselhos ao pé da letra. Em um momento de louca euforia, podemos considerar que só a paixão fatal é completa, que só na destruição o amor é sem freios, que só em um assassinato o Real vulcânico é tocado. Mas nem por isso a morte da arte adquire a beleza retratada no Império dos Sentidos. Pois o amor violento da antiarte não foi consentido. Não houve uma erotização sadomasoquista, onde dois participassem – houve um estupro. Quem são esses antiartistas para determinar que a arte – a arte como um todo, não só a obra deles – quer perecer em um abraço sangrento?

Há artistas contemporâneos dos mais variados tipos, mas ainda sofremos com antiartistas que não pretendem seduzir, apenas estuprar. Seduzem apenas colecionadores entediados, que não se importam nem com a arte nem com a vida e compram snuff movies. A metáfora vale para um enorme leque de artistas, indo além dos que empregaram métodos violentos, como Santiago Sierra (ver Crepúsculo de Paradigma). Até mesmo Hélio Oiticica, artista pertinente porém superestimado, em alguns momentos é romântico, em tantos outros cria snuff movies, “abusando” da arte,  tentando aniquilá-la. Em diversos depoimentos, Hélio dizia que seu objetivo era assassinar a pintura, apesar de sua admiração por Mondrian. Basta encaminhar-se para uma fusão indissolúvel entre arte e vida para criar um cenário de assassinato. Todavia, Sada e Kichizo não poderiam se tocar tão frontalmente, tão sem barreiras, se não houvesse um pacto de morte.

“Mata-se” um objeto amoroso, fisicamente ou simbolicamente, para interiorizá-lo, para não vê-lo, tentando se livrar da angústia da incompletude. Se nisso há audácia, também há covardia. Onde há equivalência, não há relação – em outras palavras, o amor mais cego é o amor fusionado. Uma relação é mais rica quando se enxerga o outro sem idealizações, com suas diferenças, seus defeitos, suas faltas. Somente assim o gozo deixa de ser o gozo por um Outro agigantado e se torna prazer compartilhado. No orgasmo físico, o eu se dilacera, mas logo se recompõe. Em um romance saudável há maiores variações, idas e vindas, desconstruções e reconstruções, para que o ciclo se renove. 

A dificuldade em se encontrar bons artigos sobre arte contemporânea se deve ao fato de que não se deve temer a petite morte, no entanto não se deve deixá-la ir às últimas consequencias. Deve-se tomar como imprescindíveis os momentos de restabelecimento e de dispersão, impedindo a fusão completa entre arte e vida. O objetivo de toda obra-prima é fazer com que a vida olhe para a arte, e que a arte olhe para a vida, mas para tanto, precisa haver jogos de sedução, simbolização, caminhos em ziguezague para se atingir a contraparte. Não deixam de ser recuos estratégicos, que evitam as totalizações fatais. Nem tudo é intangível, pois o isolamento dos corpos não é definitivo: há trocas, os sinais percorrem de lado a lado, um se alimenta do outro. O fato de não se extinguirem, não subsumirem um no outro é o que torna o movimento ininterrupto, refazendo-se a cada instante. É neste sentido que se defende aqui que vida e arte devem se relacionar como amantes que se percebem autônomos, que respeitam suas diferenças. Petites mortes contra a morte da arte.

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