Monday, October 11, 2010

Condição cognitiva

             A mente humana só é capaz de visualizar uma figura contra um fundo. É pelo contraste com o entorno que um objeto pode ser identificado e passar a existir para a mente. Levar isso em conta talvez seja a melhor maneira de entender que a tal da “morte da pintura” se torna mais do que um slogan de mau gosto e adquire certa força efetiva. A arte pós-moderna consiste, em grande parte, em um treinamento mental para que deixemos de distinguir as obras de arte enquanto criações autônomas, para que só enxerguemos as artes em sua disposição em um espaço ampliado. Na literatura, existe o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, indicando que a cada livro que lemos, abrem-se links para toda a História da literatura - mas nem por isso deixamos de apreciar o texto frase por frase. Nas artes plásticas, porém, há um problema com o qual a literatura não costuma lidar. O campo expandido vai muito além da obra aberta, pois não se trata do campo de interpretações: é o próprio espaço físico que se sobressai e se sobrepõe ao objeto artístico.

Qualquer artista que trabalhe com land art, arte efêmera ou performance tem sido considerado, quase automaticamente, superior aos pintores, porque a pintura preserva um espaço ilusório, enquanto as obras tipicamente pós-modernas tendem a se fundir ao espaço da arte e ao da "vida". Para muitos críticos, a expansão da arte, a ampliação de seu território físico eleva também sua importância. Com isso, os gestos mais cotidianos, de escovar os dentes a varrer o chão, passam a ser considerados manifestações artísticas exemplares, por uma questão tanto teórica quanto espacial.

            Pensando em termos de território, com tal reviravolta a arte de fato dava a impressão de se expandir, englobando potencialmente todo tipo de ação humana e todo campo visual. Manzoni, por exemplo, virou um pedestal contra o chão e decretou que o mundo passaria a ser uma escultura. Sua obra apenas começa pelo pedestal, cuja função é fazer com que olhemos o mundo inteiro como obra de arte – desde que, é claro, concordemos em atribuir co-autoria a toda nossa estetização da vida a Manzoni. Fosse este um caso isolado, não precisaríamos falar em termos cognitivos, pois o cérebro é um órgão de grande plasticidade. Poderíamos rir com Manzoni e continuar admirando as esculturas tradicionais. Porém, exatamente por ser a mente tão maleável, a repetição tende a transformá-la; suas funções se desenvolvem ou se inibem conforme exercitada de tal ou tal maneira. É de conhecimento geral a frase de Goebbels, de que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Muito mais que mil vezes foi dito aos artistas que a pintura está morta, como se leu durante muito tempo em muitos manuais de arte pós-moderna. O mundo da arte também tem suas guerras, e o maior perseguido tem sido a pintura. Ainda que hoje em dia a tensão não seja a mesma dos anos 70, continua-se a olhar até mesmo para Miró ou Kandinsky como se olha para seres inferiores.

                                   Pedestal para o mundo, de Piero Manzoni


A perseguição à pintura é o que oferece a condição cognitiva para que se valide a arte pós-moderna. A ênfase no campo expandido obriga uma obra autônoma a se retirar para o fundo, jamais vir à tona. Nessa concepção, o Mundo é que deve ser a Tela, o que torna qualquer pintura uma pequena tela dentro da Tela, muito mais diminuta do que as pinturas ao fundo de As meninas de Velasquez. O foco está nessa espécie de obra-mundo. O pedestal de Manzoni, por exemplo, pode ser visto apenas como uma figura em primeiro plano, realçando, pelas regras de contraste, a representação de todo planeta Terra (ou planeta Tela). Infelizmente, o trocadilho infame é o menor de nossos problemas.

Grande parte das obras pós-modernas se esmerou neste World Game, arte ecológica, ou como queiramos chamar uma arte que realça o entorno em vez da obra. Não é precisamente de um novo tipo de artista de que estamos falando, mas de educadores especiais – os mais bem sucedidos são os pedagogos mais bem pagos da História. Em vez de oferecerem obras-primas, ensinariam o espectador a estetizar sua própria visão de mundo. Por mais que se tenha discutido, creio que ainda não foi devidamente consideradas as consequências que isso acarreta para o tipo de artista que conhecíamos anteriormente.

Se, em uma exposição coletiva, digamos uma Bienal, uma obra direciona nosso olhar diretamente ao mundo, ou mesmo que seja apenas à arquitetura do pavilhão, uma pintura que estiver contida no prédio dificilmente será vista com potência. A percepção pós-moderna faz com que a tela com “t” minúsculo se torne um pequeno detalhe inserido em um fundo amplo demais. A pequena tela é engolida pela grande Tela. Duchamp foi o primeiro a encontrar t = 0, o instante mínimo de arte, anterior à pintura, que ele chamou apropriadamente de ready made. Conhecer t = 0 é precioso, mas depois de estabelecido o instante mínimo, não deveriam ser inibidas experiências com mais movimento. O próprio Duchamp soube disso, ele se moveu muito mais do que seus sucessores perceberam.

A julgar pela fortuna crítica sobre arte contemporânea, é notório que um imenso contingente de estudiosos não vê na pintura mais que um borrão desfocado. Não havendo um recorte mais modesto para a relação figura-fundo, o olhar deriva, deixa de notar singularidades, e tende a dar equivalência a estímulos que mereceriam diferenciações. Para muitos críticos atuais, a pintura mal se distingue de um extintor de incêndio, ambos pertencendo à mesma categoria de objetos no espaço. Se o campo da arte é expandido, o que se pode apreciar são intervenções espaciais amplas, que liguem o vermelho do extintor ao amarelo da porta de um banheiro, por exemplo. Ou, com uma diretriz mais conceitual, obras que requisitem análises semiológicas ou sociológicas, encaixando-se antes em uma teoria exterior à obra do que em sua fruição imediata. Ou obras panfletárias que chamem a atenção para todo o entorno político do mundo da arte - e nesse campo temos obras de crítica à mercantilização, o artivismo, e a indistinção entre o fazer artístico e o fazer político. Todas essas manifestações incorrem em uma série de limitações, como temos visto. Além de inúmeros problemas éticos, cabe notar que, diante de tais movimentos, dificilmente se consegue fechar o foco na pequena tela, que mal resiste com suas próprias cores, sua própria vida. Não é à toa que até mesmo muitos ex-pintores admitem, a contragosto, a morte da pintura, pois não encontram possibilidade cognitiva de conciliar seriamente a arte pós-moderna e o campo da ilusão. O frenético zoom in e zoom out que se exigiria para a coexistência de expressões adversas tem dado ampla vantagem ao zoom out.

A preferência de tantos curadores pelo zoom out é arbitrária, embora a experiência nos leve a crer que difícilmente conseguimos aproveitar bem uma grande exposição onde se dividam meio a meio as expressões tradicionais e as de campo expandido. A não ser que sejamos levianos com ambas as tendências, em algum momento é preciso privilegiar uma e rebaixar a outra, do contrário a percepção sofre com a indefinição de foco. Inclusive porque a tendência da mente é a de procurar alguma constância em meio ao caos. Por mais ecléticos que tentemos ser, é preciso admitir que a arte ilusionista e a arte do campo ampliado tendem a ser concorrentes. Quando não são auto-excludentes, no mínimo fragilizam uma à outra, o que impele a tomar partido.

Quanto mais o olhar se afasta para o zoom out, mais devemos nos perguntar: Melhor chamar isso de arte ou de decoração? De arte ou de design? Ou ativismo criativo? Ou proposta terapêutica? Não foi de um instante para o outro que Lygia Clark abandonou a arte. Foi uma grande caminhada até que ela chegasse à estética do zoom out, como uma Alice saindo do espelho. E ainda houve alguma hesitação até ela sentir que estaria mais desperta afirmando que já não era mais arte o que ela queria propor. Por mais gradual que seja esse travelling do olhar, afastando-se do espaço autônomo da arte, em algum momento torna-se quase impossível recuar e reajustar o foco em zoom in. Neste ponto, melhor pular fora, e considerar que a amplitude é tanto que já não se trata mais de arte. A arte tem sua homeostase, como um corpo que não pode inchar indefinidamente. Para manter a relação da arte para com a vida, é preciso permitir uma organicidade mínima, um campo de respiro com que preservar a integridade de uma obra.

Apesar deste limite, não se deve ser covarde demais em relação ao campo expandido. Qualquer peça de teatro se desenvolve em um espaço físico localizável, pertencente ao mundo real, ainda que se busque transfigurá-lo pela encenação. Toda performance lida com o espaço do entorno, mas seria precepitado dizer que todas escapam ao terreno da arte. Se Hélio Oiticica chamava suas obras de penetráveis, compreende-se que uma instalação, dependendo do caso, pode pertencer ao zoom in. Tampouco precisamos nos restringir ao indoors, já que a land art tem seus bons momentos, como em James Turrell ou em Andy Goldsworthy. A bem dizer, toda obra de arte dialoga com seu entorno, não só no instante imediato da fruição, como na memória, pois nós saímos de uma exposição e olhamos para as cores do mundo de maneira renovada.

O que nem todos artistas e críticos perceberam é que se a morte da pintura se tornou “necessária”, é porque há artistas rivais que rompem muito severamente com o espaço da alteridade, sem margem para ambiguidades, tornando impraticável o olhar em zoom in. Não se trata das dimensões ou do local da obra, mas da relação figura-fundo que se estabelece. Muito comuns são as obras que ensejam se fundir ao prédio onde estão expostas ou refratar o olhar da obra para a cidade. Há uma obsessão dos artistas pela arquitetura que supostamente ampliaria os horizontes da arte, mas em muitos casos apenas a fez coincidir com design de interiores ou com o urbanismo. A busca pela chamada “verdade dos materiais” também é super-estimada Se o material falar alto demais, cria opacidade, não nos permite entrar em um espaço ilusório. Por fim, é preciso ser cauteloso sempre que se propõe trabalhar diretamente com “a vida” – seja lá o que isso queira dizer – pois a estetização do espaço cotidiano não basta para se criar um espaço artístico.


Uma leitura outra


            É frágil a permanência da arte como campo de experiências distintas, já que não há, a priori, gavetas na mente que separem ficção e realidade. Nem mesmo a separação entre memória e percepção atual, ou entre sonho e vigília são muito definidas. É preciso repertório, é preciso memória semântica para que haja algum discernimento. Ao atacar muito brutalmente esse repertório, a ala radical da arte contemporânea se propõe a impedir que a fruição de arte seja compreendida como algo diferente da percepção da realidade. Adotando-se suas premissas, perderia força um repertório imenso de conhecimentos e de experiências acumuladas, não só da pintura e da escultura, como do teatro, da literatura, e de toda expressão que lide com campos metafóricos. Geralmente, não se atinge tal ponto porque há resistências – inclusive, felizmente, na cabeça do próprio anti-artista – no entanto o devir em jogo seria o do fim de qualquer expressão artística.
         
Também na literatura contemporânea ouve-se falar em “morte da poesia”, nem por isso tal sentença conduziu a resultados rigorosos, menos ainda hegemônicos. Não ocorreu nada como a década de 70 das artes plásticas, quando a pintura praticamente desapareceu das exposições mais conceituadas, de tal modo que se pensou que jamais voltaria a ser praticada seriamente. A sobrevivência da literatura como espaço de alteridade não se deve apenas a uma trajetória histórica diferente, mas ao caráter referencial da palavra. As particularidades das duas linguagens levaram a desdobramentos muito distantes, por mais que enfrentassem problemas similares. Mesmo nas experiências dos poetas concretos, em que trazem a semiologia para o primeiro plano, a palavra ainda faz alusão a uma realidade que não é somente a da tinta marcada na celulose do papel. Mesmo a poética da incomunicabilidade de Beckett ainda nos dá um mundo com personagens e situações fictícias. Blanchot entende a palavra poética como a iminência de um desaparecimento, e ainda assim, esse desaparecimento “aparece” enquanto poesia. Brecht pede uma objetividade crítica, mas a promove com meios narrativos. O artista plástico do campo expandido, por sua vez, ao recusar o espaço referencial, subjuga todas as obras que não estejam no mesmo eixo. A concorrência é desleal, pois condiciona o olhar a evitar mergulhos. Quanto mais o espaço de arte é entendido como o espaço concreto, menos espaço há para uma poética da alteridade.  

            É por isso que, além de alguma gentileza para com o trabalho dos pintores, o maior conselho que posso dar aos artistas visuais é que observem o que se passou na literatura. Exatamente por estar descartado de antemão, na escrita, exibir a realidade exterior, por só atingir o mundo pagando o pedágio da alusão, é que pôde ser interessante o jogo impossível. Os inevitáveis fracassos da literatura em esboçar um correlato para o campo expandido se mostram mais ricos do que um suposto sucesso. A última fase de Clarice é exemplar nesse quesito, como em Água Viva e em A Hora da Estrela. O narrador percebe o limite da linguagem e deseja algo mais do que a alusão, ressente-se por não escapar da referência, por não se chegar ao mundo palpável. No entanto, a falha nessa tentativa lhe parece tão evidente que o narrador prefere as amplas movimentações, levando-nos do júbilo com as metáforas à iminência de uma desintegração do espaço artístico. A sabedoria de Clarice está justamente em não estacionar no instante mínimo do signo desconstruído, ou de uma espécie de signo coisificado, mas retornar sempre ao delírio poético. É justamente nesse vai-e-vem que se estabelece um rico diálogo com o espaço da vida.

De qualquer modo, não creio que simplesmente por se inscrever no espaço matérico, a arte visual ultrapasse o limite com o qual Clarice se frustrava. Artista algum pode fazê-lo, pois arte, para existir, depende inevitavelmente de um olhar distanciado. Se o mundo chega a nós através da mente, o zoom out  é uma quimera. A arte pode convocar a um olhar mais atencioso para objetos cotidianos, mas a coisa enquanto coisa não ganha maior proximidade se exposta como arte. Podemos olhá-la com maior atenção, até mesmo tocar a coisa, mas a sensação do toque está na mente, não na ponta dos dedos – lembrando que a atividade neurológica do perceber é praticamente a mesma do imaginar. O modo como enxergamos não é propriamente o mundo, há uma espécie de ficção constante na mente para que decifremos com agilidade os impulsos que nos chegam de fora. Estamos condicionados pela memória e pelas schemattas com que concebemos os objetos. Daí a pertinência do zoom in, daí que a arte é mais potente quando preserva alguma interioridade. Jamais apreendemos a realidade, mas ousamos travar com ela um diálogo oblíquo. Por isso a arte, para uma interlocução com o inacessível enquanto tal.

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