Friday, October 8, 2010

Últimos disparos

       

Este livro não surgiu espontaneamente, mas a muito custo, alternando recuos e avanços, sob hesitações e dúvidas constantes. Foi um livro que se impôs. Não só a mim, por minhas idiossincrasias, mas ao tempo em que é escrito, devido à urgência com que a arte contemporânea exige um novo pensamento.  A alguns pode não parecer, mas não fiz outra coisa que investigar as situações que propiciam maior abertura. Disparei alguns “nãos”, porém foram nãos em defesa de maiores “sins”. Cada pensador a que recorri, cada artista que citei, cada opinião que lancei tinham o intuito de expandir possibilidades. Se, para isso, o assim chamado campo expandido deve ser contido, é um paradoxo tão instigante que não há porque pensar que a poesia perca com isso.


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Alguma razão havia para a fúria pós-moderna, não precisamos negar o fato. Infelizmente, a resposta destes para os problemas de nosso tempo foi míope e desastrosa. Se quisermos ter a visão mais aguçada do que a dos antiartistas, não podemos, contudo, deixar de analisar suas questões. Este livro foi uma tentativa – imperfeita, como todas – de se corrigir a postura diante de sérios problemas. Para tanto não deixamos de testar as lentes do inimigo. Alguns dos monstros que os adversários viam nada mais eram do que sujeira nas lentes, porém outros merecem nossa atenção, desde que ajustemos o foco. Mesmo de acordo com os nossos critérios, ainda há graves dificuldades para quem busca reafirmar a potência transformadora da arte


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           Se Lacan entende que o desejo, para existir, deve se valer de um limite percebido pelo próprio sujeito, também a arte, para existir, deve se conformar a suas limitações. Não  limitações outorgadas por autoridades, porque isso ainda seria relegar a responsabilidade ao Outro. Melhor que a obra mesma, e não um controle externo, incorpore seu limite. A restrição inerente à moldura de uma tela, a desconfiança em relação ao campo expandido, a renúncia às utopias, a recusa a se converter em mera mercadoria. “Até onde ir” não é apenas a primeira pergunta adulta que fazemos, mas uma das que mais nos mobilizam. É a pergunta que retira a liberdade do campo ideal e a situa no campo da vida, tornando um objetivo mais contingente e possível de se atingir.             


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O quanto se pode entorpecer sem endoidar? Ou queremos todos ser Syd Barret?


O quanto se pode retirar de recursos da natureza sem a exaurir? Ou produziremos sem freios até  acabaremos com tudo, civilização e natureza juntas?


O quanto um país pode crescer sem promover a desigualdade, internamente e externamente? Ou daremos vivas ao imperialismo e à opressão, não importando as consequências?


O quanto se pode ser libertino sem impossibilitar, de antemão, a disponibilidade para o amor? Ou não há desespero e solidão por trás de uma busca compulsiva pelo prazer imediato?


O quanto que um movimento político pode contestar o status quo sem esmagar o indivíduo? Ou ainda acreditamos que um povo se liberta à força, que um enorme Outro comandando tudo do alto mantém as coisas em igualdade?


E quanto se pode testar o corpo sem o arrebentar? Afinal não somos imortais, somos finitos, e por mais que queiramos controlar a natureza, é preciso admitir que nossos corpos são um tanto frágeis.


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Tanto em Lacan quanto em Nietzsche, os dois pensadores que mais nos guiaram neste livro, encontram-se sérias admoestações contra a arte. Nietzsche se pergunta longamente se a arte seria catártica ou estimulante, e em alguns momentos a toma por uma ascese que nos desviaria do contato franco com a vida. Porém, após alguns rodeios, volta sempre a afirmar a potência da arte, ao ponto de dizer que “a vida sem música seria um erro”.


             Lacan, por sua vez, não implica com a arte menos do que com toda linguagem. Pois as palavras nos são impostas, tal como ‘parasitas’. Tanto as palavras do cotidiano como as de cunho mais poético estariam, inevitavelmente, encobrindo o Real. Contudo, apesar de se dispor como um véu, a arte pode apontar para o abismo, insinuar que há algo a mais, e nisto está seu valor. Aí se constata que Lacan foi muito próximo dos surrealistas e conservou seu legado.


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Devemos nos orientar rumo ao socialismo? Sim. Mas como um vetor entre tantas outras forças a se considerar. O anseio por uma revolução igualitária deve nos guiar até onde a dignidade subjetiva é preservada. Paralelamente, a utopia de aproximação entre arte e vida pode ir até onde se preserve a autonomia da arte. O espírito mais elevado é aquele que compreende uma verdade um tanto frustrante, que não sucumbe diante de um limite. Recusar peremptoriamente um limite evidente é fraqueza, é não suportar ver. Há práxis que levam inevitavelmente à apraxia – a movimentos inadequados para seu fim.


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Se quisermos encontrar linhas de fuga, precisamos primeiro limpar o emaranhado e desfazer alguns nós.


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        Mesmo que nossos diagnósticos estejam corretos, isto significa que os antiartistas irão “se curar”? Não tenhamos tanta certeza disso. Há resistências e pulsão de morte que impedem um melhor fluxo. O que se pode esperar não é que o passado se conserte, mas que a produção futura esteja melhor encaminhada, em especial entre os mais jovens. O que, aliás, é tendência, é devir ativo, desde já.


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              Os momentos de dúvida de Lacan e de Nietzsche apenas reforçam o quanto a arte resiste a diversos ataques. Jamais duvidar da arte ainda seria repressor – reprimiria a dúvida, seria tamponar de maneira forçosa. Questionar é o que se deve fazer, mas com a honestidade exemplar dos pensadores desprendidos, não com o rancor dos que querem reprimir.


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           Da arte para a política: nenhum modelo político interessa que impeça o indivíduo de se desenvolver com autonomia, de resistir em seu corpo e em sua subjetividade à opressão da sociedade. O Estado sempre será Leviatã e sempre deve encontrar oposição. Não se deve, por ingenuidade, esperar por soluções totais.  
               
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Quanto mais um sujeito se relaciona com diferentes sujeitos e com diferentes situações, e quanto mais atento ele for a tudo o que o envolve, mais livre ele pode vir a ser, pois mais amplo será seu leque de opções. Quanto à arte, podemos inferir que quanto melhor ela responder à nossa vida, quanto mais ela dialogar com o que sentimos e vivemos, tanto mais interessante ela nos será.


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                Se toda a energia que se gastou condenando a pintura e outros meios mais “comerciais” fosse gasta na afinação de parcerias como as de Asger Jorn e Guy Debord, já teríamos, a esta altura, uma tradição forte de repasse de recursos. Não é um costume que poderia surgir sem o preâmbulo de uma crise, mas poderia ser bom tanto para artistas quanto para ativistas. Tanto a arte quanto o mundo em torno da arte estariam melhores. Quantos jaules de força não se gastou no ataque à arte, quantos decibéis não foram alcançados com estridência? Muito barulho para nada.
               
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Se ao menos um punhado de criadores bem intencionados se esmerarem, poderemos inaugurar uma tradição resistente. O olhar que ensinamos até aqui é um olhar audaz, agora requer mãos aptas.


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Só teremos sucesso se cuidarmos que as forças centrífugas não dispersem nossos vetores. O entorno não deve nos subjugar, o dinheiro não pode falar mais alto, o poder não pode vir antes da arte. Em torno da arte, para que esta não seja corroída, é preciso que a atmosfera não seja contaminada. Continua sendo alarmante que, em um mundo de disparidades, a arte, cuja vocação é colocar sob tensão a visão de mundo corriqueira, possa ser cúmplice da desigualdade.



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Mas é justamente porque tanto se odiou arte, porque se a desprezou, porque se a temeu que ela reforça seu encanto e seu poder. A História provou, mais uma vez, que a arte é inimiga dos burocratas do sentido, sejam da esquerda ou da direita. Não há motivo melhor para defendê-la. E nem mesmo os políticos profissionais deram tanta importância a um palanque quanto os representantes da antiarte “revolucionária”.
               
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A utopia pela utopia é tão ou mais vazia que a arte pela arte. Não se articula com a realidade, não reconhece o estado de coisas em suas reais possibilidades, suas dobraduras, seus limites e suas brechas. É sonho fátuo, e, é bom ressaltar, advém mais da estética que da ética. Imaginei um mundo belo, diz o utópico, e mal se importa com a incompatibilidade da sua visão pessoal com as contingências mais problemáticas. Lutar pelo mundo tal como deveria ser é estético; preferimos o mundo tal como pode vir a ser, empenho ético. O refinamento do senso estético leva ao refinamento do senso ético, justamente por desfazer confusões entre um e outro. Por isso os políticos autoritários detestam uma arte livre, e por isso os ativistas que sabem amar as expressões de arte tendem a ser mais flexíveis.
   
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Na política, por mais transformadores que queiramos ser, é preciso perceber a correlação de forças, perceber onde a situação permite mudanças e onde nossos vetores, por impetuosos que sejam, serão desviados por outros. Pensar composições complexas, considerando os inimigos (internos e externos), considerando reações diversas e adversas. Do contrário, arte e vida apenas assumem um jogo neurótico. Quando se opera uma castração pesada à arte, obrigando-a a se limitar à uma conduta idealista, o que se intenta é negar limites pessoais, falsear um projeto de vida isento de furo.


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O confronto bilateral é insuficiente para superar a sordidez do estado de coisas, pois não prevê brechas, não permite linhas de fuga, não possui devir que não esteja condicionado pelo próprio confronto. Está modelado pelo inimigo. A vida é repleta de coisas belas. Se o inimigo nos faz detestar a vida como um todo, a ponto de esquecermos disso, já estamos derrotados.
               
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           O pós-modernismo, visto pelo retrovisor, enquanto o ultrapassamos, é interessantíssimo. Ele se propôs a analisar as questões mais pertinentes que um artista possa fazer. Tiveram a coragem de forçar o pensamento artístico até seu limite. Acertaram na questão, que jamais havia sido enunciada com tanta força, e nesse empenho tiveram valor – mas foram apressados nas respostas, no que se mostraram lamentáveis.    


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Jamais diremos que os antiartistas possam ser rejeitados em absoluto. Se nos limitamos a isso, damos-lhes a primazia, restringimo-nos a uma sintaxe imposta por eles. Antepor a negativa ainda não é superação, pois não desloca o eixo o bastante, não forma novas sintaxes. Não basta acrescentar um não à sintaxe adversária, nem mesmo quando o adversário já traz o prefixo anti. Mais do que recusar os antiartistas, giramos sua base. Que eles sejam refletidos no espelho para que todos tirem suas conclusões. 


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Amor não é simples, requer certa técnica e disponibilidade. Algum conhecimento é necessário, porém a dissecação excessiva, a razão e o debate sem fim o assassinam.  

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