Monday, October 11, 2010

Crepúsculo de paradigma

1.      O caso

1.      O caso

O terreno em que estamos aqui é movediço. Mesmo quem tenha, como eu, amor pela boa e velha arte moderna não deve deixar de notar que esta já trazia os vetores de uma iminente destruição. Há pouco tempo, celebramos o centenário do discurso da antiarte, que foi lançado pela primeira vez por Marinetti em seus manifestos futuristas. Conclamando artistas e público a destruírem toda obra arte dos museus, Marinetti pôs para rolar uma bola de neve que não teria como ser detida antes do fim da colina. Contudo, se no início Marinetti, ou mesmo a anti-arte de Marcel Duchamp, acabavam convivendo lado a lado com pinturas vívidas, a partir dos anos 60 assistimos a uma aceleração no processo destrutivo, que se deu com maior literalidade. O programa, muito resumidamente, era a destruição da arte tradicional para que a estetização saísse das obras e penetrasse direto na vida. Na primeira metade do século XX, as colagens cubistas de Picasso e Braque, a supressão da moldura em Mondrian e a escrita automática dos surrealistas já apontavam para uma subordinação do campo da “arte” ao campo da “vida”. No entanto, ainda havia um espaço, um interstício, um intervalo entre a fruição de arte e as experiências que consideramos cotidianas. Os modernistas costumavam recolher temas e materiais do cotidiano para composições, mas só no pós-modernismo, na segunda metade do XX, é que se pôde seriamente considerar os gestos mais triviais, como varrer o chão, tão ou mais artísticos do que uma pintura expressiva. É precisamente contra qualquer interstício entre arte e vida que a arte pós-moderna tenta se posicionar. Se o conseguiu é duvidoso, mesmo porque seu pré-requisito não é muito modesto: uma vitória triunfal sobre todas as experiências artísticas anteriores. Nas artes plásticas os paradigmas moderno e pós-moderno competem ferozmente e, ao menos em suas manifestações mais acentuadas, são auto-excludentes. Alguns críticos tentam resolver com diplomacia, mas a conciliação não é simples; uma verdadeira guerra é travada.

Não podemos ignorar, contudo, que a primeira crise foi a do modernismo. Tomemos o declínio do expressionismo abstrato, nos anos 60, como momento decisivo. Tomemos o expressionismo abstrato como última manifestação artística a manter acesa a chama modernista, uma posição que não destoa muito do que consideram o críticos Clement Greenberg e Harold Rosenberg. A gestualidade radical, o embate ritual do artista contra a tela, a afirmação máxima da subjetividade de Pollock e Rothko conquistaram o mundo da arte de maneira indiscutível por décadas. No entanto, não tardou para que uma infinidade de imitadores tentasse obter a mesma sorte, atraídos pelo sucesso fácil, e tentaram repetir uma fórmula. Assim, o que na pintura dos primeiros era experiência vertiginosa, com gestos e cores ganhando a tela com energia, em seus epígonos se tornou um procedimento previsível. Tudo o que fora potente nos anos 50, no início dos 60 se institucionalizava. Até mesmo o governo norte-americano cooptou o movimento, empregando-o como propaganda na Guerra Fria. Tendo isso em mente, pode-se compreender melhor porque houve uma reação ao modernismo, cujo colapso se deu justamente por ter atingido o auge de sua influência.


                          Jackson Pollock na Life Magazine

A aversão à sistematização da arte, que cooptava até mesmo expressões tão potentes quanto às de Pollock, De Kooning ou Rothko foi, sob certo ponto de vista, a rebeldia contra o efeito nocivo do mercado e das instituições sobre a imaginação. Propagou-se entre os artistas mais jovens uma sensação de que não havia como ir adiante sem ser rotulado, e que mesmo o artista mais livre estaria submetido a um grande circo que o domesticaria. Sentiu-se como encerrado o paradigma do modernismo, que apostava na subjetividade, na criatividade e na autonomia das formas. Infelizmente, mesmo que consideremos que haja alguma pertinência nessa reflexão, o que constatamos é que o passo seguinte foi demasiado reativo, levando a uma grande ressaca, a uma descrença em relação à legitimidade da arte, aprisionando gerações de artistas em autocomiseração. Andy Warhol pode ter seus momentos interessantes, mas já não apresenta uma imagem autônoma, e sim sua impossibilidade. Os minimalistas fizeram do laconismo seu leit motiv: nada além de “uma coisa depois da outra”. Vito Aconcci convenceu a crítica de que os gestos mais cotidianos, mais literais, como escovar os dentes ou subir em um banquinho, merecem mais atenção do que qualquer obra consagrada.  Joseph Kosuth já não consegue olhar para arte alguma, de tanto que patina na tautologia. Não foram poucos, também, os artistas que pretenderam aniquilar a arte retrospectivamente, sabotando qualquer apreço que se pudesse ter pela maior parte das obras-primas do passado.

Há que se considerar que dez anos observando o quanto Pollock se tornaria uma fórmula impeliram os artistas a se recusarem a seguir em uma diluição semelhante. A infelicidade é que hoje temos cerca de cinquenta anos em que a arte pós-moderna se consolidou como a mais acadêmica e a que mais depende das instituições em toda a História da Arte. Não se vê, ainda, a mesma preocupação em colocar a arte dita pós-moderna sob o mesmo escrutínio arrasador que se impôs aos artistas modernos. Os melhores críticos e artistas têm, felizmente, revalorizado a arte moderna, no entanto ainda há muita timidez para revelar que boa parte dos pós-modernos não tem uma proposta capaz de se sustentar por si mesma. Para a ala mais “radical” do pós-modernismo, o simples fato de a arte anterior ter permanecido de pé continua intolerável. Isto porque a teoria antimoderna é totalizante, presumindo um ponto de não-retorno e uma aposta de reformulação total que não se confirmou. Em alguns momentos, a prática esteve acima dos erros da teoria, resultando em obras melhores que suas justigicativas; em muitos outros momentos, não. Como veremos, o crepúsculo do paradigma antimoderno pode ser lento, porém inevitável, devido às suas próprias fraquezas e contradições.

2. Ocaso

Um enorme contingente de jovens artistas ainda apostava no expressionismo abstrato em 1962, ano da Marylin Monroe de Warhol, mas nenhum deles viria a ganhar espaço decisivo na História. O paradigma em que trabalhavam, o da arte moderna, estava destinada a se enfraquecer drasticamente. No atual momento, ainda há muitos artistas apostando nas premissas anti-modernas, porém os vetores mais pronunciados nos mostram que estas não poderão vingar por muito tempo. Tomemos 2008, que, se foi um ano de crise financeira, também foi um ano em que a arte contemporânea se deparou com uma série de golpes severos. A especulação excessiva na Bolsa levou à crise econômica e, assim esperamos, cedo ou tarde resultará em uma revisão da mentalidade. Pois na arte também a especulação é excessiva, ainda há muita resistência no reconhecimento da qualidade estrutural da crise, mas cedo ou tarde devem conduzir a uma nova mentalidade.

Décadas de mistificações formam uma couraça quase indestrutível, ainda assim parece que as reavaliações começam a se intensificar, que muitos artistas jovens têm mostrado uma postura mais generosa, e que já nos aproximamos do momento em que a “morte da arte” será compreendida como ideia nociva. A mudança de paradigma não se dará abruptamente, no entanto já se percebe que a enorme bola de neve está se desacelerando sob o sol, derretendo conforme o calor reaparece. Se em 2008 vimos ruir grandes bancos e empresas que pareciam inabaláveis, no campo das artes visuais tivemos ao menos três situações de grande visibilidade onde o desgaste da arte demonstra ter atingido um ponto máximo: na internet, entre milhões de internautas; na Bienal de São Paulo, que só não é mais importante que a Bienal de Veneza; e nas opiniões do editor de New York Times. Qualquer dessas situações foi tão ou mais constrangedora do que a cooptação de Pollock como propaganda de governo pela CIA. Ainda assim, é mais fácil redimir Pollock do que os antimodernos.

No primeiro semestre de 2008, o costa-riquenho Guillermo “Habacuc” Vargas, que havia exposto um cachorro à fome até a morte em uma galeria comercial, foi convidado a participar da Bienal de Honduras. Tamanha foi a onda de protestos na internet que nenhum outro poderia lhe tirar a “glória” de ter sido o artista mais comentado do ano. Ao menos 2,6 milhões de pessoas assinaram uma petição online pedindo o boicote à sua participação na exposição, comovendo não só os leigos que supostamente "não entendem de arte" como muita gente do circuito artístico. O maior diferencial no episódio foi a repercussão entre artistas e críticos, pois Habacuc em nada é pior do que artistas como Santiago Sierra. Habacuc ganhou essa fama desonrosa diante de milhões de internautas, porém, no meio artístico, Sierra tem maior prestígio – e suas táticas são bem semelhantes, trocando o sofrimento de um cachorro pelo de seres humanos. O passo natural, ao menos assim esperamos, será tomar o caso Habacuc como jurisprudência e seguir adiante.

Sierra, um dos artistas mais inescrupulosos de que se tem notícia, vinha conseguindo boa posição sem grandes objeções, ao menos antes de Habacuc nos forçar a melhorar o debate. Sierra já confinou um homem em um espaço minúsculo por dias seguidos em troca de 10 dólares à hora, já vandalizou com agulha de tatuagem toda uma fileira de mulheres marginalizadas em troca de dinheiro para drogas, entre outros abusos de poder. Em suma, o trabalho de Sierra consiste em tortura e humilhação propositalmente inúteis e na aceitação disso por parte da vítima, em troca de dinheiro. Habacuc e Sierra, os dois artistas se valem de premissas muito semelhantes, embora não gozem da mesma popularidade por parte da “vanguarda” e da crítica. Aproxima-os o pensamento de que a arte deve ser a mais explícita possível, atuando literalmente na vida (inclusive na carne), apesar de, pelo simples fato de ser “arte”, exigir um olhar que dê a suas obras um salvo conduto. Suas intervenções, ao menos na teoria, funcionariam como “denúncias”, como ilustrações didáticas de lições para a sociedade. É como se a carne, dentro da galeria, deixasse de ser carne, transfigurada pelo discurso, pela autoridade do artista, e, por estranho que pareça, pela moral. Habacuc se defende dizendo que chocar os espectadores serve para acusá-los de hipocrisia, pela sua insensibilidade diante de todos os demais cães famintos fora da galeria. Sierra também apela para a moral, acreditando que os maus tratos que inflige sobre os marginalizados nos alerta para a exploração e para todo tipo de abuso do mundo “de fora”. Exemplos como esses nos ajudam a perceber como a suposta fusão entre vida e arte dos pós-modernos tende a criar relações das mais cínicas ou das mais maniqueístas quanto ao “dentro” e o “fora” do espaço artístico. Qualquer coisa entre o charlatão e o fora-da-lei tem sido válida, desde que dentro do espaço de arte. Ao colocar “a vida” dentro “da arte”, desnaturaliza-se a vida a tal ponto que esta se torna apenas referencial. Os exploradores são sempre os que estão “fora” da galeria, jamais o artista. É questão de tempo até os artistas que rejeitam Habacuc entenderem que é incontornável rejeitarem também Sierra. E, com um pouco mais de reflexão, perceberão que, mesmo quando não agem igual a esses dois, muitas vezes seus discursos preparam o solo no qual as ervas daninhas prosperam com enorme facilidade.


                                 Santiago Sierra: Linha de 160 cm tatuada em 4 pessoas    

O ataque de pichadores à Bienal, por exemplo, pode ter sido radical, e não sou o único a pensar que ao menos deixou claro o quanto toda a exposição era débil. Não precisamos pensar nos pichadores como as verdadeiras ervas daninhas, pois não ingressam em definitivo no circuito artístico, estando mais para uma reveladora contraparte. Podemos inclusive ver em seu gesto um protesto social, realizado por jovens que costumam ficar à margem de tudo o que a alta cultura tem a oferecer. Reconhecendo ou não seu protesto, o que interessa mesmo é pensar como o ambiente artístico reagiu. Quem conhece bem a dinâmica entre “dentro” e “fora” do meio artístico podia prever que não tardaria para que até um gesto radical como esse fosse cooptado por quem tem seus contatos. Aproveitando a atenção da mídia, um dos coletivos mais fúteis, o Assume Astro Vivid Focus, realizou uma “homenagem” aos pichadores na galeria que os representa. No discurso, os membros do Assume Astro Vivid Focus pareciam enfezados contra o mundo da arte, tachado por eles de elitista e conservador, e portanto merecedor de pichações e outras agressões. Na tese, antiarte clássica. Porém, artistas oficiais que são, transformaram o ataque dos pichadores em um alerta tão hipócrita contra o mercantilismo da arte que não se constrangeram em reapresentar os grafismos em forma de harmoniosos tubos de néon. Os pichadores receberam uma surra dos guardas e a prisão de um de seus integrantes, enquanto os artistas de elite agradeciam e lucravam com a transgressão. Diga-se de passagem que as luzes de néon tendiam para o pink. Como um farol que, menos do que salvar de tormentas, seduz colecionadores que navegam em mar de rosas. O jogo tem sido esse há muito tempo, está apenas se escancarando.

Os pichadores, aliás, não fizeram mais do que testar o lema pós-moderno “Todos são artistas”. Há uma segunda parte deste lema que é apenas sussurrada, porém está no contrato: “Todos são artistas, desde que interesse aos poderosos”. A ideia do curador de manter um andar vazio na Bienal segue na esteira de Andy Warhol, dos minimalistas, de Joseph Kosuth e de todos que fazem da renúncia à arte uma discussão pós-moderna para milionário ver. Caso queira, um ignorante com cacife pode consumir o néon rosado, como tem consumido obras oportunistas semelhantes das últimas décadas. Por outro lado, não tem muito o que fazer diante dos pichadores que atacam suas paredes sem avisar. Felizmente. Caso realmente não se consiga promover os pichadores no alto circuito comercial, a situação será auspiciosa, pois impõe um limite, um corte na voracidade consumista que mal repara no que deglute. Isso é quase inédito, se pensarmos que até o sadismo torpe de Habacuc e de Sierra têm sua vez. Aliás, não havia, tampouco, como consumir o vazio literal, o andar sem obras do pavilhão da Bienal, por mais que o desaparecimento da arte seja a base de todo o discurso pós-moderno. A maioria dos críticos não gostou de ver seu próprio discurso atingindo o ápice, e os mais ágeis já começam a questionar se interessa insistir em um paradigma que insiste tanto na recusa. Quem antes apenas suspeitava, pôde finalmente comprovar que a morte da arte não é mero jogo de palavras, é um devir bem rigoroso. E pode parecer ridículo para quem não acompanha de perto, porém a “morte da arte”, explícita ou implícita, é uma ideia que agradou a ponto de ter sido hegemônica. Em parte porque vivemos em uma cultura niilista, em parte porque os serviços fúnebres se mostraram dos mais lucrativos.


                                         Bob Ross
O último grande incidente que pretendo comentar envolve nada menos que The New York Times, e aqui eu peço para que não sejamos tão provincianos como costumamos ser. Diante da crise financeira mundial, os economistas estão atentos ao Brasil, procurando aqui soluções que no momento têm dificuldades de encontrar por conta própria. Os Estados Unidos, por mais influentes que sejam, propagaram um modelo econômico que falhou, e o que parecia prosperidade revelou-se uma das maiores bolhas da História. Dito isto, podemos atentar para o livro de Michael Kimmelmann, editor-chefe de arte de The New York Times e compreender que o modelo norte-americano de arte é tão frágil quanto suas subprimes. Lançando em 2008, o livro é intitulado The accidental masterpiece: on the art of life and vice versa. Louvado à exaustão por seus compatriotas, os ensaios de Kimmelmann dão preferência à arte diluída no cotidiano, em detrimento das obras-primas consagradas. Kimmelmann exacerba uma das premissas fulcrais da arte contemporânea: a de que não existem gênios. A tal ponto leva a sério esta ideia que a mais despretensiosa coleção de lâmpadas lhe interessa mais do que a resistência de Guernica de Picasso. A ideia de que não existem gênios surgiu há algum tempo na crítica de arte em consonância com o marxismo, apesar de logo cedo ter servido apenas como fachada. Tão deturpada é esta apropriação que se esquece de que Marx admitia genialidade nas mais diversas áreas – Hegel, Darwin, Shakespeare, Rembrandt, para não dizer do Marx por ele mesmo. Os mais fiéis marxistas não teriam por que adotá-la, mas a posição é defendida com euforia, pois responde a certos interesses. É o pré-requisito para que muitos artistas medíocres ganhem mais respeito, atualmente, do que os maiores do passado. A teoria é boa para os galeristas, que não precisam esperar pela peneira do tempo, como se qualquer coisa se igualasse ou superasse as obras-primas; os críticos adoram, pois se não há segurança quanto à qualidade, a autoridade de sua palavra é o único critério; e agrada também ao colecionador de nossos tempos, que, cada vez mais narcisista, não quer se intimidar pela figura dos artistas excepcionais. O mais aborrecedor é que um solo epistemológico tão terraplanado como esse não se constrange em dar destaque a Bob Ross, por exemplo. O problema do mote “Todos são artistas” não termina com a domesticação dos rebeldes, com a humilhação física, com o escárnio contra a boa arte do passado, nem com a propagação de oportunistas – ainda temos que suportar ensaios onde Bob Ross é alçado a uma espécie de herói. Trata-se de um apresentador de televisão norte-americano que nos anos 70 ensinava as pessoas a pintarem. Ele ensinava a pintura mais tradicional, basicamente paisagens, em passos simplificados para que qualquer telespectador pudesse imitar. O problema é que como se tratava do professor de arte mais assistido nos EUA, e como ocupa um lugar caloroso na memória infantil de Michael Kimmelmann, foi por ele alçado ao panteão dos artistas mais significativos dos últimos tempos. O único critério tem sido o poder de quem enuncia. Sendo esta a opinião de um homem que representa um dos maiores jornais do planeta, temos que acatar a homenagem post mortem ao apresentador de um programa de tevê pasteurizado, que ensinava uma pintura das mais medianas entre intervalos comerciais. Que pinte como Bob Ross quem tiver vontade, só não pense que terá assim uma arte de resistência, ou da mesma qualidade que a dos artistas mais complexos. Kimmelmann finalmente levou o pós-modernismo a um ponto ridículo demais para se prolongar século XXI adentro. Não conheço muitos artistas “de vanguarda” que queiram estar no mesmo patamar que Bob Ross – ou talvez um degrau abaixo. A dívida do New York Times, devido à crise, chegou a US$ 1 bilhão de dólares, o que deveria nos encorajar a não imitar formadores de opinião norte-americanos acriticamente.

3. À casa

Quem juntar todas as peças, entenderá que não se trata de casos isolados ou acidentais. É o atual solo epistemológico que dá margem para um sem-fim de situações deploráveis, as que citei são apenas alguns exemplos. Enquanto não repensarmos os valores vigentes, nem mesmo os poucos artistas excepcionais dos últimos tempos podem garantir um bom ambiente para a arte. Os mais pertinentes são vistos no mesmo nível de uma multidão de artistas dos mais insossos e corrosivos. Um recorte mais generoso para com a melhor arte do passado é necessário, e não deve ser entendido como conservador. Pelo contrário: o que vemos no antimodernismo é uma arte da especulação excessiva, do título acima da produção, do laissez-faire e do valor atrelado à confiança em instituições especializadas. É preferível que se reconheça a disparidade entre talentos, que se considere um Rauschenberg ou uma Agnes Martin como artista de importância consideravelmente maior que a de Bob Ross, não importando o capricho de Kimmelmann. Mais até: não fazê-lo tira a potência do ambiente cultural, neutraliza-o. Limita-se o interesse do público, já que a credibilidade da arte contemporânea como um todo é posta em dúvida, e se limita a intensidade, pois não se vai até o fundo, apenas se deambula de um evento para outro. O paradigma em voga, em vez de primar pela separação entre joio e trigo, tem apenas separado o mundo de dentro e o de fora da galeria, como fazem os hosts de boates elitistas. Do lado de dentro, os caprichos dos artistas e dos críticos; do lado de fora, a realidade sem néons, a violência sem justificativas estéticas, e a dura competitividade dos que não caem nas graças de padrinhos poderosos.

Os aspectos constrangedores da situação atual vinham se esboçando há cem anos, e ao longo de toda a descida; há tempos os vetores apontavam para a situação limite a que chegamos. Atingimos finalmente um fundo do poço, pois dificilmente a arte poderá ser mais alheia ao mundo do que com Habacuc e Sierra; ou mais vazia do que o foi na 28ª Bienal de São Paulo; ou mais hipócrita do que nos néons de Assume Astro Vivid Focus; ou mais fútil do que nos elogios a Bob Ross. Bons observadores já estão notando que o paradigma antimoderno está em franco declínio, embora não se saiba muito bem o que virá pela frente. Cuidemos, portanto, para que não se suceda nenhum movimento reativo. Há desafios pela frente, mas igualmente bons augúrios, não só porque muitos jovens artistas resistem ao panorama deprimente, mas pela própria eclosão da crise. A vertigem diante do nada torna propícia a redescoberta de potências positivas, a reinvenção e o combate à mediocridade que nos assola, tanto na vida como na arte. Para tanto, precisamos urgentemente de posicionamentos mais claros e corajosos por parte dos artistas e dos críticos. Após décadas de constrangimento, ao menos estão mais claros os equívocos a se evitar.

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