Quando se fala em "Maio de 68", o mês em questão é extremamente dilatado, transcendendo seus limites cronológicos para todo o espírito da época. Foi, sem dúvida, o grande marco de uma geração, mas não é no calendário que se define seu início. Os pais talvez tenham sido os beats, espíritos livres da década de 50, mas seus precursores mais diretos foram, talvez, os Provos, jovens ativistas que tornaram Amsterdam a cidade liberal que conhecemos hoje. Também não se pode negar a influência de músicos contestadores como Bob Dylan, Janis Joplin, Jimi Hendrix, e, claro, os Beatles, ou de pensadores como Foucault, Marcuse e Guy Debord, que já vinham alimentando as ideias da época. Na verdade, as reivindicações daqueles jovens ecoavam insatisfações que estavam em peleja há muito mais tempo: os sonhos românticos do século XIX, que se chocavam com uma sociedade hipócrita; os ideais de igualdade defendidos em 1848; um status mais digno para a sexualidade, no caminho aberto pela psicanálise; a promessa de aproximação entre arte e vida, defendida pelas vanguardas modernistas.
Se assentirmos que não há causas isoladas que "expliquem" os levantes de 68, não vejo porque desconsiderar vetores cuja eclosão tenha se dado muitos anos antes. Neste ponto concordo com Walter Benjamin: "nenhum fato, por ser causa, já é, só por isso, um fato histórico. Ele se tornou tal postumamente, graças a eventos que dele podem estar separados por milhares de anos." Citei o trecho, retirado de "Teses sobre o conceito de História" porque é extremamente desgastante ouvir a ladainha de que "o modernismo falhou". A euforia do pequeno círculo de artistas que revolucionou a forma no início do século XX me parece muito com a que se propagou em maior número pelos jovens dos anos 60. Mesmo assim, a arte moderna é constantemente acusada de ter sido cooptada pelo sistema e diminuída por não ter realizado uma aproximação entre arte e vida. A meu ver, são acusações tacanhas. As grandes obras do passado podem ter despertado o interesse do mercado devido a sua potência, mas são resistentes, não se aniquilam tão facilmente. Os discursos de muitos dos artistas modernistas eram revolucionários, desafiavam os burgueses, prometiam mudar a sociedade através da arte, mas não se pode cobrar seus resultados em termos práticos e imediatos. Talvez – embora não se possa precisar em que medida - esses artistas tenham contribuído para mudar o mundo décadas depois, exatamente por terem sido absorvidos, por terem entrado na corrente sanguínea de um público mais amplo.
Verdade seja dita, no entanto, que aquilo que Benjamin chamava de socialismo costuma causar profundo desgosto aos marxistas ortodoxos, e provavelmente seria rejeitado pelo velho Karl. Não é à toa que um dos críticos de arte mais politizados de nosso tempo, T. J. Clark, dedicou um ensaio chamado “Deveria Benjamin ter lido Marx?”. Segundo ele, a vontade de transformação do frankfurtiano estava mais associada a um messianismo judaico do que a uma leitura consistente de O Capital, confundindo, não sem poesia, diversas “totalidades instáveis”. Quanto à utopia dos jovens de 68, por mais que contagiada pelo marxismo, na realidade se voltava muito mais para a micropolítica, transformando o sistema por dentro, do que pela efetiva tomada do poder. Tampouco era marxismo ortodoxo o que foi proclamado pelos artistas de vanguarda do início do século XX. Basta ler suas propostas. Uma das mais curiosas é a de Huelsenbeck, dadaísta alemão, que falava em comunismo para reivindicar o desemprego progressivo e a adoção do poema simultaneísta como oração estatal. Outros dadaístas oscilavam entre um anarquismo desiludido (Tzara) e a completa apatia política (Duchamp). No cubismo, Picasso levou décadas para declarar apoio ao Partido Comunista, mas nem essa conversão o tornou simpático às interpretações marxistas de suas obras. Breton, porta-voz do surrealismo, trocou intensa correspondência com Trotsky, defendendo que na ditadura do proletariado a arte deveria permanecer anarquista. Surpreendentemente, Trotsky concordou, mas, como todos sabem, em vez dele foi Stálin quem chegou ao poder, impondo o detestável realismo soviético para os artistas. Há muito tempo que se tenta o impossível, mas talvez ainda seja realista dizer que a imaginação tem seu poder. Maio de 68 foi prova disso.
Se assentirmos que não há causas isoladas que "expliquem" os levantes de 68, não vejo porque desconsiderar vetores cuja eclosão tenha se dado muitos anos antes. Neste ponto concordo com Walter Benjamin: "nenhum fato, por ser causa, já é, só por isso, um fato histórico. Ele se tornou tal postumamente, graças a eventos que dele podem estar separados por milhares de anos." Citei o trecho, retirado de "Teses sobre o conceito de História" porque é extremamente desgastante ouvir a ladainha de que "o modernismo falhou". A euforia do pequeno círculo de artistas que revolucionou a forma no início do século XX me parece muito com a que se propagou em maior número pelos jovens dos anos 60. Mesmo assim, a arte moderna é constantemente acusada de ter sido cooptada pelo sistema e diminuída por não ter realizado uma aproximação entre arte e vida. A meu ver, são acusações tacanhas. As grandes obras do passado podem ter despertado o interesse do mercado devido a sua potência, mas são resistentes, não se aniquilam tão facilmente. Os discursos de muitos dos artistas modernistas eram revolucionários, desafiavam os burgueses, prometiam mudar a sociedade através da arte, mas não se pode cobrar seus resultados em termos práticos e imediatos. Talvez – embora não se possa precisar em que medida - esses artistas tenham contribuído para mudar o mundo décadas depois, exatamente por terem sido absorvidos, por terem entrado na corrente sanguínea de um público mais amplo.
Verdade seja dita, no entanto, que aquilo que Benjamin chamava de socialismo costuma causar profundo desgosto aos marxistas ortodoxos, e provavelmente seria rejeitado pelo velho Karl. Não é à toa que um dos críticos de arte mais politizados de nosso tempo, T. J. Clark, dedicou um ensaio chamado “Deveria Benjamin ter lido Marx?”. Segundo ele, a vontade de transformação do frankfurtiano estava mais associada a um messianismo judaico do que a uma leitura consistente de O Capital, confundindo, não sem poesia, diversas “totalidades instáveis”. Quanto à utopia dos jovens de 68, por mais que contagiada pelo marxismo, na realidade se voltava muito mais para a micropolítica, transformando o sistema por dentro, do que pela efetiva tomada do poder. Tampouco era marxismo ortodoxo o que foi proclamado pelos artistas de vanguarda do início do século XX. Basta ler suas propostas. Uma das mais curiosas é a de Huelsenbeck, dadaísta alemão, que falava em comunismo para reivindicar o desemprego progressivo e a adoção do poema simultaneísta como oração estatal. Outros dadaístas oscilavam entre um anarquismo desiludido (Tzara) e a completa apatia política (Duchamp). No cubismo, Picasso levou décadas para declarar apoio ao Partido Comunista, mas nem essa conversão o tornou simpático às interpretações marxistas de suas obras. Breton, porta-voz do surrealismo, trocou intensa correspondência com Trotsky, defendendo que na ditadura do proletariado a arte deveria permanecer anarquista. Surpreendentemente, Trotsky concordou, mas, como todos sabem, em vez dele foi Stálin quem chegou ao poder, impondo o detestável realismo soviético para os artistas. Há muito tempo que se tenta o impossível, mas talvez ainda seja realista dizer que a imaginação tem seu poder. Maio de 68 foi prova disso.
Alguns marxistas que não perderam o tom revolucionário, como Slavoj Zizek, desconsideram as conquistas do período, já que o capitalismo não só continuou firme após os abalos como soube converter a rebeldia em mercadoria. É a mesma crítica que se faz à arte moderna. Alguém poderá dizer que minha compreensão de marxismo é ainda mais pobre do que a de Benjamin, mas não posso achar irrelevantes a revolução sexual, o avanço do feminismo, a luta contra o preconceito e a flexibilização de certas hierarquias, todas conquistas dessa geração. É evidente que estamos muito longe das utopias pelas quais se lutou, mas ao menos algumas possibilidades se abriram, inclusive novas brechas por onde se continuar lutando. Considerações como “Maio de 68 fracassou” ou “a arte moderna falhou ao ser cooptada” só podem vir de quem mal se desprende das superestruturas, quem não tem um olhar atento para a subjetividade, para o micro, e esmaga o indivíduo sob um materialismo tão opressor quanto o do capital. Do marxismo mais vulgar, podemos nos defender com a ajuda dos melhores pensadores daquela época, tais como Foucault, mas no caso da arte pós-moderna, ainda não há disposição para uma reavaliação à altura. Harold Rosenberg talvez tenha sido o Foucault das artes plásticas, alguém que leu Marx porém soube discernir até que ponto este interessa aos artistas. Tivessem escutado o que de mais importante ele tinha a dizer, tivessem lido o que ele escreveu sobre a des-definição da arte, não estaríamos hoje no apogeu da crise. Uma crise artística, convém dizer, totalmente acadêmica e elitista, que não colabora efetivamente para uma revolução social.
Será que o “conflito de gerações” ajuda a entender o que aconteceu com a arte nos anos 60? Os estudantes iam para as ruas e renunciavam ao comodismo de seus pais, ao passo que a arte pós-moderna se satisfez em demolir seus “pais artísticos”, os modernistas. O problema pode ser justamente a diferença de caráter dos “inimigos”. Os pós-modernos fizeram oposição das mais maniqueístas a uma geração revolucionária. Talvez fosse o que lhes restasse para manter o orgulho, do contrário só sentiriam mais radicais do que os precursores caso abandonassem completamente a arte e se juntassem ao alarido das ruas. Não haveria muito que lamentar sobre essa geração de artistas caso tivesse uma duração semelhante ao do dadaísmo, de poucos anos, dissolvendo-se em 68, que foi quando o recado já havia sido entendido. A esse ponto de comprometimento eles não chegaram, é claro, por interesses pessoais. Rosenberg disse bem: a Revolução de Maio tornaria qualquer anti-artista radical uma farsa. Uma infinidade de coisas importantes estavam acontecendo sem assinatura ou estilismo, mas os artistas insistiam em acreditar que fazer política se resume a brincar de auto-crítica cínica nas galerias. Se levassem Guy Debord a sério como os estudantes levaram, entenderiam que para efetivar uma transformação às vezes é preciso deixar a arte de lado. A verdadeira fusão entre arte e vida se faz na vida – as pichações nos muros em Paris só surtiram efeito porque não eram assinados, porque não eram “arte”.
Em vez de se queixarem anemicamente do sistema, do mercado e da alienação do público, não teria sido melhor fazerem como Asger Jorn? Ele certamente ouviu os mesmo discursos que os outros, e a última coisa que queria era que seu trabalho fosse confundido com um produto a mais no mercado. No entanto, ele ainda queria pintar livremente, não queria limitar sua vontade criadora a um jogo histérico e estéril apenas para “não entregar o ouro aos burgueses”. De fato, as forças centrífugas do dinheiro e do poder podem turvar o olhar, e quando a obra é sobrevalorizada, tendemos a desconfiar da sinceridade do artista. Mas ele encontrou uma saída. O ouro estava pesando sobre a obra, então ele decidiu escoá-lo para Guy Debord, que inegavelmente teve papel significativo naquele momento de agitações. Com isso, ele manteve, duas vezes, a integridade de sua arte. A arte se aliou ao ativismo criativo, mas não teve que negar sua autonomia. Os braços continuaram leves para pintar sem que as cifras se sobrepusessem à pintura. Arte e ativismo podem formar boas parcerias, não só com dinheiro, mas com influências mútuas, pois seus objetivos se complementam. Mas, como é de liberdade que se trata, um não deve subjugar o outro.
A arte, sozinha, não pode mudar a realidade objetiva. Pode mudar as pessoas, individualmente, imprevisivelmente, de uma distância estratégica. Um artista pode e deve estimular os movimentos sociais para que estes sejam cada vez mais fortes e dinâmicos, mas tanto a arte quanto a política se descaracterizam quando se tornam uma só. Para qualquer pessoa que ao menos uma vez tenha experimentado um ativismo criativo sem a vaidade de colocar seu gesto nas revistas de arte, isso é bastante simples de se entender. Um ativismo que tenha seu foco na rua não precisa se transformar em outra coisa, não precisa virar arte e se enfiar em salão nobre. O diagnóstico pessimista dos pós-modernos ortodoxos não confirma um fracasso da arte nem um fracasso dos ativistas. Entretanto, às vezes me sinto tentado a concordar com o veredicto de “cooptação” quando se trata dos próprios acusadores, dos artistas pós-modernos. Afinal, qual vem sendo o resultado? Quem potencialmente teria vocação para uma militância honesta hoje se sente seduzido para o campo da anti-arte, deixa de ser revolucionário em troca do reconhecimento restrito de seus pares. Perde em sinceridade, perde fôlego, tornando-se um subversivinho de estimação que os colecionadores afagam como a um pitbull bem treinado ou ignoram sem maiores perturbações. Por outro lado, quem tem o talento específico de um artista não encontra o lugar que antes haveria para ele. Rejeitado pelo crivo dos intelectuais, é muito comum que se torne publicitário ou coisa do gênero. Nem sequer podemos culpá-lo. Por incrível que pareça, qualquer pessoa com talento para arte hoje se sente mais livre trabalhando para o mercado das massas do que no circuito de artes visuais, niilista como ele se encontra. Fosse eu um pouco mais paranoico, diria que esse jogo é intencional, que o capitalismo preparou a mais sutil de suas armadilhas e todos caíram. Divergências ideológicas à parte, mesmo o mais ferrenho dos bolcheviques deveria concordar que esta cooptação é bem mais grave do que a assimilação dos ideais de 68 pela democracia burguesa.
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