Monday, October 11, 2010

Apresentação


Bem sabemos que não existe a Verdade. Nem por isso devemos descartar a busca pelo sentido. Ao menos desde Nietzsche, sabemos que o sentido não existe de maneira imperativa, deve ser criado. No entanto, se não o criamos, ou se o criamos de maneira leviana, todos os valores se equivalem, tanto faz a vida como a morte, e até o fascismo pode ser justificado. O relativismo mal compreendido tende ao niilismo, o qual o pensador alemão, longe de defendê-lo – como supõem as leituras superficiais – combateu arduamente. Não há critérios absolutos para a criação do sentido, mas cada premissa traz em seu bojo consequências, e não considerá-las em sua imanência incorre no que podemos chamar de má-fé. Os argumentos não devem ser forçosos, as articulações devem dar conta dos movimentos a que se propõem. No presente livro, haverá certamente contradições, mesmo propositais, pois as antinomias muitas vezes são mais precisas do que as certezas. Ainda assim, combaterá algumas posições que se demonstram incapazes de propiciar saltos maiores. Talvez seja esse o critério que melhor nos guie: defender o pensamento que dê conta do maior número de situações que a experiência nos traz. Para bem filosofar, é preciso coragem e vigor que, infelizmente, nem todos demonstram possuir. Como compensação, temos na arte um poderoso auxílio para suportarmos a angústia da maior de nossas tarefas. A criação do sentido requer que se combine às empreitadas filosóficas um espírito artista.
            
Não se disfarça nestas aqui o ímpeto de romper paradigmas. Paradoxalmente, o livro é tão mais disruptivo quanto mais destrona supostos rebeldes. As rupturas não valem por si mesmas, não valem apenas pelo radicalismo. É preciso ver em nome de quê se provoca um levante, não apenas sair atirando. A decadência das grandes narrativas, que marca a mentalidade pós-moderna, não pode ser um festival aleatório de assassinatos – morte da História, morte da filosofia, morte da arte, etc. A destruição é parte de qualquer processo de transformação, e deve ser apoiada quando abrir possibilidades instigantes. Infelizmente, a abertura para devires promissores não aconteceu com a frequência desejada no caso da arte pós-moderna – ao menos não em muitas de suas manifestações mais características. A retirada da Verdade, passo importante apesar de arriscado, quando mal entendido pode dar lugar a comportamentos cínicos, por vezes sofistas e por vezes desesperados. Abundam os oportunistas sob pele de cordeiro e os niilistas no sentido mais fraco. No caso das artes plásticas, o debate se concentrou na questão da morte da pintura, cujos desdobramentos são abrangentes e cujas dificuldades requerem análises cuidadosas. Antes de mais nada, é preciso admitir que o problema existe: mesmo que, após a fase mais radical dos anos 60 e 70, a pintura na prática tenha sobrevivido, é preciso ter a clareza de que uma ala muito influente da arte pós-moderna ainda a repele. Não se coloca impunemente uma obra tipicamente pós-moderna ao lado de uma pintura: há uma agressão, há um ataque violento que a sensibilidade deve perceber e questionar. O prejuízo não apenas à pintura como técnica específica, mas à potência da arte em geral, prolonga-se em muitos casos recentes, seja ou não adotado o termo “morte da arte” em meio aos discursos.

Também é preciso admitir que, por mais que alguns dos aspectos da arte contemporânea pareçam caricatos, desde os anos 60 se impuseram como uma tentação irresistível para os artistas e para o meio. O fato de terem aparecido simultaneamente em diversas regiões endossa a constatação de que tais desenlaces, durante um período, foram inevitáveis, gostemos deles ou não. Na França, Yves Klein teria sido, por um lado, o último grande artista moderno e, por outro, o primeiro a fazer do vazio uma obra, abrindo caminho para a arte conceitual pós-moderna. Nos Estados Unidos, tivemos, da Pop Art em diante, uma intensa reação ao expressionismo abstrato (especialmente a Pollock), tanto na teoria quanto na prática. No Japão, o grupo Gutai antecipou o cultuado Fluxus na proposta de dissolver a arte no cotidiano – e, ironicamente, os japoneses eram extremamente reverentes a Pollock, provando que pontos de partida aparentemente opostos levariam a direções semelhantes. Isto fica ainda mais evidente quando consideramos que em todas essas regiões, Marcel Duchamp se sobrelevava como referência máxima, ao passo que no Brasil, Hélio Oiticica o rechaçava terminantemente, encontrando em Mondrian e nos construtivistas russos seu caminho para o pós-modernismo. Movimento irrefreável, mas, como veremos, nem sempre como uma evolução. 

            Os ataques à arte se mantêm mesmo quando não verbalizados com todas as letras, e faremos aqui um esforço para deslindar as posições em disputa. É leviano acreditar que uma conciliação acrítica seja sustentável. A experiência e o pensamento mostram que a diplomacia indulgente com atores extremamente antagônicos está corroendo a possibilidade de que a arte ainda possa criar qualquer sentido. O que se propõe com estes artigos não é desvendar o sentido da arte, que cada um deve encontrar por si mesmo, mas demonstrar algumas premissas para que o diálogo entre arte e vida aconteça. Para tanto, deve-se conceder à arte maior autonomia do que se lhe tem permitido - o que de modo algum significa o isolamento da arte em torre de marfim, mas uma relação de alteridade com a vida. Para haver relação é preciso mais do que um, jamais uma indistinção escorregadia, que acaba por sufocar espaços de desejo. Se a arte está em xeque, também a vida está, mas é justamente o niilismo que procuraremos superar. Realizemos a destruição produtiva, liberando uma energia que a sabedoria poderá aproveitar.

No comments:

Post a Comment

Note: Only a member of this blog may post a comment.