Se, como propõem os pós-modernos, não houver mais qualquer separação entre arte e vida, o resultado não pode ser a derrocada do ilusionismo, posto que impossível, mas uma equivalência de todas as expressões que, de uma maneira ou outra, virtualizam a vida. A rigor, seria impossível distinguir grande arte de decoração, design, moda ou os piores programas de tevê. Melhor dizendo, destruídos todos os espelhos, não haveria qualquer motivo sério para supor que os gestos de um artista mereceriam maior atenção do que os gestos de um apresentador de auditório. Sejam videomakers ou performers, se não saltam para o campo da arte, estão no mesmo plano que os apresentadores. Destacados, os apresentadores de TV recorrem a uma mediação explícita (ou da câmera ou do próprio status do artista), e trabalham para capturar o olhar. Não existe arte em essência, portanto não há qualquer diferença a priori. A única possibilidade que os críticos têm proposto para colocar o artista em vantagem é a moral. Algum limite, como se vê, continuou sendo buscado, mas em vez de um limite qualitativo para o que se queira denominar arte, que ao menos seria compreendido como linha imaginária, tomou-se uma separação brusca entre o Bem e o Mal. Uma linha divisória das mais autoritárias e intelectualmente frágil. É preferível traçar uma linha entre a linguagem corrente da vida e a linguagem de sua própria alteridade, mesmo sabendo que a localização dessa linha é subjetiva, pessoal, até mesmo escorregadia.
Os corolários de nossa empreitada dependem dessa convenção, a de supor que existem criações que merecem ser vistas com lentes diferentes das que usamos para enxergar a vida cotidiana, e outras tantas que não. Não abandonamos o terreno da convenção, porém lançamos suposições que nos permite movimentações mais proveitosas. Aquilo que, através de recursos sofisticados de linguagem, colocar sob tensão nossas percepções cotidianas, poderemos chamar de arte. Por outro lado, nem toda combinação de formas, mesmo que competente, merece o mesmo status. Sequer toda música, ainda que a música seja a mais abstrata das expressões estéticas, deve ser considerada arte. Um jingle de propaganda tem que ser visto com frieza, com olhar crítico e desapegado. A estética está ali, mas as intenções não são artísticas, pois seu propósito foi demarcado de antemão. Se arte é aquilo que não tem uma função fechada, também não pode sevir ao mercantilismo, não pode ter a circulação de dinheiro como seu objetivo primeiro. Aí é que muita gente se confunde, é preciso saber olhar para algumas expressões bem trabalhadas no quesito formal, mas poder dizer: “Isto não é arte”. Contudo, para isso não é preciso cair no moralismo. Tudo aquilo que responde a um jogo de cartas marcadas, a trânsitos pré-estabelecidos, não propicia alteridade significativa para a vida, apenas à manipulação da vida. Uma telenovela fraca, que não passe de isca para que a audiência morda os intervalos comerciais, não interessa ser vista como arte, pois não é algo que nos permita diálogos dos mais dinâmicos com nossas vidas. Melhor dissecá-la, pensá-la como um produto, como algo subordinado a motivações das mais corriqueiras e restritas. Portanto vida, e não a sua parte mais interessante.
Na maior parte dos casos, podemos entender os programas de tevê como informação corrente, cotidiana – mesmo quando se tratar de ficção. O julgamento caso a caso fica por conta de cada espectador, não serei eu a despejar regras absolutas, contudo o contato frequente com a grande arte tende a sofisticar a percepção da linguagem. Novelas comerciais, filmes enlatados, programas reciclados – tudo que é kitsch está preso demais às leis do cotidiano, a começar pela demanda do mercado. Rapidamente, se percebe sua estética diluida, sua pressa em agradar a um público muito grande, inespecífico, diante do qual não se correm grandes riscos. Exceções à parte, não há na indústria cultural muita capacidade para fazer vibrar desde fora o universo pessoal de alguém bem informado. Para tanto, é preciso envergadura, é preciso por para deslizar todos os discursos de verdade. Quanto mais culto é o espectador, mais um produto simplista lhe parecerá previsível, discurso repetido, ilustração demagógica, e tanto mais sofisticada terá que ser a arte para colocar todos esses discursos em ângulo oblíquo, deles se desviando para superá-los, desde fora. O que se mede na arte é a capacidade de estabelecer diálogos com a vida. A arte não vale por si mesma, mas pelo que oferece à vida. Pelos seus prolongamentos, pela potência que desperta na vida. Por trás dos significantes manifestos, é uma enorme boca que deve se abrir, grande o bastante para oscular a vida, enquanto lhe sopra segredos no ouvido.
O modernismo foi interessante enquanto soube sacudir o espelho ou chamar a atenção para sua manufatura. Seus sucessores, no entanto, se perderam com a pretensão de que o espelho deveria ser retirado. A intenção dos pós-modernos, teoricamente, era neutralizar todo e qualquer tipo de criação estética, justamente para que ao assistirmos um comercial de TV, ao pegarmos uma embalagem ricamente colorida ou mesmo ao nos depararmos com horas e horas de ficção enlatada, saibamos não nos iludir. O resultado é que os pós-modernos retiraram apenas o espelho da arte, mas os atos-reflexos permaneceram, tal como os incorporamos desde crianças. Não é à toa que o discurso da arte contemporânea tantas vezes assume estridentes tons de verdade, convicções autoritárias sem auto-crítica. Não se permitem um olhar de fora. Tentam forçar uma univocidade. Pior: da arte tal como a entendíamos, só mantêm o distanciamento, e é a realidade inteira que fica distante, transposta para o espaço mental da arte. Em vez de uma pintura ou um filme, são os dados mais concretos que são empurrados para o lado de lá do espelho, a própria vida se virtualiza. Estimulam um olhar distanciado para as questões políticas, para a materialidade, para as relações cotidianas... Feitiço contra o feiticeiro, falseiam a realidade, tanto ou mais que os telejornais que dizem detestar.
Pode soar sarcástico, mas para ninguém é uma constatação muito simples, do ponto de vista psicológico, entender que há algo concreto lá fora, que há pessoas reais sofrendo. Os seres humanos só têm acesso a uma representação do mundo real, não ao mundo em si. Todo contato com o mundo é mediado pela mente (em parte consciente, em parte inconsciente) onde a linguagem chega antes do que o corpo. Não é tão simples entender que o outro não é um fantasma, apertemos ou não a sua mão. Tampouco é simples assimilar que os problemas sociais não são espetáculo para burguês ver, que nas tragédias há mais que palavras ou imagens. Ainda mais difícil é entender que alguma coisa pode ser feita, que alguma interferência nessa realidade é possível. É muito frequente acharmos que estamos aceitando o outro, quando na verdade estamos lidando apenas com uma projeção de nosso eu com outras roupas.
Aí está o equívoco em se obrigar a arte a estar sempre colada ao estado de coisas, sem autonomia, sem um espaço próprio. Por mais fundamental que nos seja o Outro, é preciso não se alienar nele. Não adianta criar obras moralistas e com isso pensar que se superou a indústria do entretenimento. Trata-se do erro mais frequente de muitos artistas pós-modernos. Só vamos longe o suficiente se percebermos que até o politicamente correto nos corrompe. A abnegação ás vezes pode ser uma recusa em aceitar a alteridade. A totalização acrítica – uma equivalência cega, onde afago o outro porque projeto nele meu reflexo, mas não o vejo. Aceitando a arte em sua alteridade, entendemos que é de esguelha que se aprende a admitir a existência do outro. No embate demasiado frontal ou na fusão – ou seja, quando se recusam os ângulos oblíquos – vemos apenas nosso reflexo na pupila alheia, seja do amigo ou do inimigo. Melhor uma ética da alteridade ensinada pela estética.
A obra de arte genuína perdura, resiste ao tempo, está acima do mero consumismo. Opõe-se ao processo de reificação generalizada, desde que se mostre intensa e sincera o bastante para superar os produtos da indústria cultural. Toda obra de arte consistente revela, por si mesma, a fragilidade espiritual do mero mercantilismo. Não ao se travestir de seu oposto, mero sinal invertido que apenas reforça visões binárias e caricaturais. Não ao ostentar um corpo oco plasmado pela força contrária; mas por ser uma das poucas atividades humanas capazes de evidenciar que é possível ultrapassar as limitações de sua época.
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