Monday, October 11, 2010

Duchamp e a fonte

Duchamp não conduz a arte para o fim, mas para seu início. Ao definir o gesto artístico como um ato de deslocamento, ele moveu o olhar da vida para a arte. Revelou assim o momento inicial, um nascimento. A arte não começa com o manejo de formas, nem com representações, mas por um processo intelectual. Não é à toa que seu ready-made mais famoso se chama A Fonte.  O formato do urinol nos lembra o de um útero. Útero que recebe o jorro masculino - fertilizado, portanto. Útero que propicia, não a vida, mas a não-vida, no momento em que a arte se desloca da vida. Por toda a carreira de Duchamp, acompanhamos suas indagações quanto ao instante primeiro da arte. Sua última obra, Etants donnés retomará algo da Fonte, assim como d’A origem do mundo. Uma obra bela, sensual, que confunde a todos que creem que Duchamp estivesse sempre na recusa. A dama se oferece nua, de pernas abertas. Tanto a lanterna a gás quanto o murmúrio tranquilo no rio nos indicam que Marcel teria chegado a uma distensão. Após décadas de indagações quanto à origem, em sua palavra final nos oferece formas tentadoras em um dia de sol. Há quem diga que neste momento ele foi pouco duchampiano. Muito pelo contrário.


                                           Étant donnés, de Marcel Duchamp   

Os epígonos o compreenderam mal. Pensaram que ele os levaria sempre ao fim (da arte, da diferença, da sensação). Obcecaram-se pelo fim, mas logo seu testamento, não souberam observar. O deslizar da água, a beleza retomada, talvez fosse o que ele sempre quisesse – mas só depois de dissecações, elucubrações, rodeios e obstáculos auto-impostos. Foram vinte anos que ele despendeu em Étant donnés para se permitir finalmente a entrega. A imagem nua se percebe por uma frincha, atrás de uma porta. A arte é sempre o inacessível, o que se olha de esguelha. Mas que, enfim, revela algo. Étant donnés é ao mesmo tempo o avesso e a continuação do Grande Vidro, obra que, não por acaso, Duchamp jamais conseguiu terminar. No famoso vidro, uma noiva rodeada de celibatários, cortejada por eles. Uma recusa, porém tantalizante, carregada de energia. Mecânica, embora desejante. A transparência nos dava uma pista: tentativa de ir além e aquém da Fonte: de se chegar a um momento anterior, antes mesmo da fertilização. Inclusive, antes da arte. Transparência, correr os olhos através, ver o que a obra não mais comporta, o imprevisto do que é visto no salão onde a obra se situa – afinal, o espaço da vida sempre precede o espaço da arte. Por oito anos, Duchamp tentou marcar, no vidro, o momento anterior, aquele que pudesse antecipar o deslocamento da vida para a não-vida. A noiva que é cobiçada, mas não é fertilizada.

Jamais se satisfez com o Grande Vidro, jamais o completou. Queria nessa obra o impossível. Queria a arte como algo que dispensa o nascimento, que recusa a divisão primordial. Uma criação celibatária, onde arte surge da vida sem fertilização. Alcançou e não alcançou: o Grande Vidro (ainda) é arte, mas, vazado, dá passagem ao que não é arte. Revela o entorno – porém retorna, emoldura-se, mantém-se arte. Anos a fio, julgou que somente descansaria quando encontrasse um momento anterior ao do útero. Jamais poderia, e somente quando o vidro se rachou, acidentalmente, ele declarou a obra definitivamente inacabada. Somente assim, comportando sua falha, a obra se concluiu.

                                                     O Grande Vidro

O início é o que a Fonte revela, mais que isso não há como recuar. Muitos artistas dos anos 60 ainda insistiriam, com ambições de ficção científica. Já que na física avançada tempo e espaço se equivalem, julgaram poder retroceder, preceder a Fonte (o nascimento) através de manipulações radicais no espaço. Por mais que tentassem, os antiartistas não expandiram o espaço nem retrocederam no tempo, apenas dilataram os anos do dadaísmo, sem o mesmo frescor. Estabeleceram uma cínica relação com a técnica dos deslocamentos. Duchamp foi mais preciso, sabia que o número de ready-mades deveria se restringir ao mínimo – justamente porque era o momento mínimo da arte o que ele buscava. Tampouco os minimalistas, a despeito do nome, fizeram o mesmo que ele. Suas formas neutras não mostravam nascimentos, mas o engolimento do entorno. Em vez do pequeno deslocamento de um objeto comum para o universo da arte, era a vida que pretendiam deslocar, ela inteira, para o espaço da arte.

Para destruir, estabeleceu-se uma fórmula. Procura-se converter em arte o entorno onde uma obra se situa - o traçado do salão, a arquitetura do prédio, o skyline da cidade. Deslocam-se os gestos mais espontâneos, as atividades mais triviais, a própria vida, tudo para o espaço da arte. Como se tudo coubesse de volta ao útero. Neste momento, a fonte implode pelo excesso, já não é capaz de fazer nascer. Não é à toa que passam a falar em morte da arte.

Só deveria ter havido um artista duchampiano, mas tivemos milhares. O desafio era desvendar a origem. Não se pode reconduzir toda a arte para t = 0, para o instante primeiro. T = 0, uma vez encontrado, não deve travar os movimentos seguintes. Em seguida, seria preciso deslizar, prosseguir, como o próprio Duchamp fez. Depois dele, Brillo Box de Warhol, aspiradores de pó de Koons, e tantas outras insistências. O que venderam: a nostalgia impossível de um recuo do mundo ao útero. Morte não só da arte, como do desejo.



Até mesmo para se comunicar o vazio, em arte, é preciso construi-lo. Não há como apenas apresenta um objeto cotidiano e dizer que seu ready-made esvazia a noção de arte.  Porque a coisa é mediada pelo autor, que, especialmente nas tentativas de antiarte, pesa demais em nossa percepção. Duchamp mesmo, para não pesar sobre seus readymades, teve uma vida reservada, estoica, onde tecia um esvaziamento de si mesmo – notável em sua magreza, inclusive. Bastou-lhe alguma fama, alguma assinatura, para perceber que só poderia continuar nos fazendo sentir o nada caso seu vazio fosse mais construído. Aí temos o Grande Vidro, onde os fins são os mesmos, mas requerem maiores rodeios, passos mais vastos, em ziguezague. Tampouco é de se estranhar que, assim que ele se apaixonou pela primeira vez, tomado por uma energia inédita, ele tenha criado Etant donées. Já não falava mais do vazio, mas de seu sucedâneo: o desejo.

Não esqueçamos de que Duchamp começou pintor. E terminou homenageando outro pintor, Courbet. A arte é como a roda sobre o banco: mesmo imóvel, deve conter, em potência, movimentos infinitos. Não pode se reduzir a T = 0. Uma vez demarcado o início, sigamos adiante, que após o nascimento ainda há que se respirar. A separação é dura, mas necessária. Do eu para o não-eu e da vida para a não-vida.

Leia também: Condição cognitiva





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