Monday, October 11, 2010

Reescritas

Evidentemente, a história oficial está mal contada. Pois mesmo que acompanhemos a trajetória daqueles que mais infligiram danos à autonomia da pintura, vemos que não tardaram a dar uma reviravolta e repensar os ataques iniciais. Rauschenberg, antes mesmo que Andy Warhol, adotou uma posição que podemos tomar como antiartística. Fez seu nome apagando um desenho de De Kooning com uma borracha, episódio bem representativo do espírito destrutivo de sua geração. Pouco depois, com Factum I e Factum II temos novamente uma ironia contra a expressividade da arte, uma vez que no díptico cada gesto se duplica do modo mais mecânico possível, minando toda a espontaneidade. Nos anos 50, Rauschenberg não queria afirmar nada, e nisso seria imitado pelos pós-modernos. Tal como Andy Warhol e Liechteinstein, Rauschenberg  trabalhou com referências pop, fotos e serigrafias, porém, com o passar do tempo, ficaria claro que já não teria  muito em comum com eles. Todos persistiam esvaziando a imagem, mas Rauschenberg, apesar de sua posição inicial refratária, foi pendendo mais claramente para a admiração pelos pintores expressivos. Como efeito colateral, perdeu pontos entre os críticos pós-modernos e praticamente caiu para o segundo plano. Isso apenas lhe deu o mérito de estar duas vezes a frente de seu tempo: uma vez, antecipando o pós-modernismo, e na segunda, ultrapassando-o assim que constatou seus limites.  




                              Factotum I e II

Ao contrário do que se tornou stablishment, Rauschenberg passa a impor uma subjetividade forte. Lida com referências codificadas, porém, ao contrário dos demais, não se deixa codificar, não se restringe às ironiazinhas fáceis que fizeram escola. Ele comenta o excesso de informações provenientes da cultura de massa, mas isso não o impede de afirmar algo pessoal diante do caos. Assimila o lixo sem nele se esvair, sem perder a tensão, tornando pessoal o que é refugo, sempre apontando para o quanto o acúmulo de dejetos pop nos polui. Os signos impessoais da indústria cultural penetram em nossa memória, mas podemos responder com uma organização pessoal de todo o lixo. Da impostura de dejetos faz-se reciclagem, faz-se comentário individualizado – portanto resistente. Concomitantemente, após um momento inicial de recusa totalizante, Rauschenberg volta a crer na pintura. Gestos pictóricos batalham diretamente com as imagens pop e se reafirmam na matéria. Há continuidade entre seus pneus, estrados de cama, animais empalhados e a tinta espessa. Por ter desistido da monótona posição de anti-expressionista, por ter preferido dar nova força à pintura, foi preterido pela crítica, tornou-se desconfortável para esta. Apesar de ter precedido a toda uma geração de antiartistas, Rauschenberg não viu interesse em se restringir ao que ajudou a criar.

Ele compreendeu que a experiência de antiarte deveria durar poucos anos, tal como o ocorreu no dadaísmo.  O suficiente para limpar a mente, para reavaliar o que se estava criando, para formular novas perguntas e seguir em frente. O surrealismo deu continuidade ao dadaísmo de maneira mais afirmativa que destrutiva, e somente assim fez valer seu legado. Do contrário, o episódio traumático deixa de agir como impulso criativo e se torna paralisante. A maioria demorou demais para perceber isso, e é devido a esta lentidão que a arte pós-moderna vem deixando o lixo se acumular até o cheiro de chorume se tornar insuportável.


Morris


Rauschenberg não é o único caso. O próprio Robert Morris, pai do minimalismo, após  muitos anos atuando no campo expandido, relaxou em seu discurso tautológico e voltou às pinturas. Não é por isso que precisamos cair no corporativismo – nem tudo que é pela pintura se sai melhor do que o que é contra a pintura.  Há que se dar crédito para bons jogadores do time adversário. Morris jogava muito bem no time rival, é preciso admiti-lo. O ponto é que Morris defendia ferrenhamente a impessoalidade na arte, algumas vezes de maneira quase neurótica, mas ao final, terminou por dar valor ao ilusionismo. "Canvas back", de 2003, resgata algo da atmosfera de De Chirico, que influenciou artistas como Salvador Dali e Magritte. Retrocede, portanto ao início do século XX, ápice do modernismo. Não se trata de uma obra inovadora, no entanto o título é sugestivo. Tornou-se um procedimento banal entre pós-modernos exibir o verso de uma tela, para literalmente dar as costas para a pintura. No entanto, nesse caso, pode-se pronunciar "canvas is back", ou seja, a tela está de volta. O zelo com que ele empregou as tintas não nos induz a pensar em uma ironia, mas em uma reconciliação afetuosa com a pintura.

Mas por que ele retornaria ao que quase enterrou, tendo sido um dos mais empenhados na antiarte? A revisão não faria com que suas obras "clássicas", que primavam pela objetividade, passassem a ser vistas com menos rigor, diante da conclusão de que ele terminaria recuando? Na maturidade, ele fez questão de esclarecer que a empreitada minimalista – a obra de arte vista como ponto mínimo de um campo expandido – por mais que aspirasse a uma ampliação do conceito de arte, não  substitui experiências mais intimistas com as obras. Talvez o minimalismo tangencie limites mais do que os ultrapasse, porém Robert Morris sentiu o ponto a partir do qual valeria contradizer tudo o que defendera antes, retrocedendo para o zoom in. É possível também que tenha se cansado porque o ataque à arte é bola de neve; por uns dez ou vinte anos, ele foi um herói quase inquestionável pelos críticos “de vanguarda”, mas tamanha glória não duraria tanto tempo. Não havia como frear nem a contínua expansão do campo visual (o zoom out, como vimos em Condição cognitiva), nem a sede destrutiva do ambiente artístico. Resumindo, para diversos críticos, com o tempo Morris ficaria pequeno. A preocupação da arte, para muitos, passaria a ser diretamente com o planeta. Não jogos formais entre uma escultura aqui e o prédio ali,  como no minimalismo; cada vez mais um olhar siderado que não quer saber de objetos, quer atos, assistencialismo, documentos, jornalismo – ações pragmáticas dominando o espaço que um dia pertencera à arte. O suporte não é mais a tela ou a escultura, é a Terra. Ultrapassado, Morris não se demonstra bobo ao retornar à pintura. Intuitivamente ou não, percebeu que promovendo vetores do lado oposto, puxando a correnteza em refluxo, poderia conter esse zoom out que foi longe demais. Em algum momento, no meio do caminho entre a pequena tela e a grande Tela, suas esculturas seriam novamente percebidas.



                           Robert Morris: Canvas back


E afinal, dá mesmo para dizer que a pintura é mais limitada que a obra sem molduras, que se expande até se confundir com a paisagem? O problema da arte de campo expandido é que quando o espaço da realidade não se distingue do espaço da arte, há que se ter as mesmas cautelas e freios que nos guiam em nossas relações sociais. Por mais livres que queiramos ser, algum código de conduta nos orienta, nos contém. A menos que simpatizemos com quem faz sexo à força, quem espanca os outros gratuitamente e outras atitudes antissociais, uma arte inseparável do cotidiano esbarra o tempo todo com os limites da realidade. A maioria de nós rechaça essas atitudes, mas também é a maioria que, ao menos em imaginação, tem algo de perverso – o que, qualquer bom psicanalista pode confirmar, é absolutamente normal. A conclusão é a de que o limite no campo expandido vem do superego. É a moral que vem ditando até onde pode ir a arte. A pintura pode ter limites em suas arestas, mas sua imersão ilusionista não encontra qualquer limite moral. As possibilidades se infinitizam.

A arte ilusionista oferece permissão para onde não podemos ir – você pode ser um verdadeiro monstro na imaginação, não se sinta culpado – ao passo que no campo expandido temos de nos conter. O campo talvez seja expandido para  a obra, mas para o espectador pode ser bem sufocante. Às Pinturas Negras de Goya, por exemplo, devemos ser imensamente gratos, pois nos ajudam a lidar com a violência da imaginação sem reprimi-la. A arte ilusionista dá vazão a todos os sonhos e pesadelos que não teriam lugar no mundo concreto que, se não ganham alguma válvula de escape, nos fazem lamentavelmente empobrecidos de recursos mentais. O masoquimo dos pós-modernos está justamente em se reprimirem, não se permitirem nem sequer na imaginação. Se Morris retorna à pintura, pode ter sido por sentir que esbarrara neste limite, o de não se poder movimentar tão livremente no campo expandido quanto no terreno infinito da imaginação.

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