Monday, October 11, 2010

Breve comparação entre os panoramas da literatura e da arte

Não se trata de uma hierarquia. Não é sempre que os escritores se mostram mais inteligentes ou mais avançados do que os artistas visuais. De maneira geral, no primeiro momento modernista pareceu ter ocorrido o contrário. É evidente que Proust, Virginia Woolf, Joyce e Cummings revelaram qualidades desconhecidas até então, mas nas artes visuais a transformação não era menor, e na quantidade, o número de vanguardistas atuando com brilhantismo dava alguma vantagem aos artistas visuais. Seria o trabalho de Joyce mais complexo que o de Picasso? Difícil dizer, a ruptura do cubismo também combina um elevado intelectualismo com um rebaixamento do tema, também estira a linguagem ao seu limite com autocrítica aguda. Tanto como em Joyce, oferece uma compreensão ampla da arte, uma íntima coalescência entre realidade externa e o espaço da arte, também realiza o esmiuçamento da percepção (tanto no nível consciente como no inconsciente). Os impressionistas, aliás, já vinham preparando um terreno de alta fertilidade, que desembocaria em Van Gogh, nos expressionistas, em Kandinsky, Malevitch, em Matisse, no dadaísmo, em Arp, Brancusi, Miró e tantos outros. Pode-se chegar à casa das dezenas para abarcar o número de gênios que estiveram à altura dos maiores nomes da arte de todos os tempos.  Na literatura de mesmo período, não foram tantos os que podemos colocar no mesmo nível de Shakespeare, Cervantes ou Goethe.

Não se trata de uma superioridade da literatura sobre a arte visual: ler o mundo em uma tela não é experiência mais pobre do que olhar para o mundo na companhia das palavras. Cada linguagem apresenta suas dificuldades, mas nas últimas décadas se tem visto que literatura e artes plásticas não compartilham de um mesmo tempo histórico, de modo geral não são contemporâneos um do outro. A literatura e sua crítica hoje têm mais consistência do que nas artes visuais, é preciso admiti-lo.  Os equívocos da arte visual recente não ocorreram com a mesma intensidade e proporção do que na literatura. Reconhecer que a arte visual falhou gravemente nos abre a interessante perspectiva de estudar por que o mesmo não teria se dado de maneria peremptória na literatura. Os desafios teóricos foram, em grande parte, semelhantes, mas o resultado, não. Também na literatura houve "anti-arte", também na literatura houve quem pretendesse matar o poema, matar o romance, considerar toda produção criativa alienante ou meramente comercial.  Apesar disso, a imensa maioria dos poetas e escritores persistiu, e mesmo quando deram ouvido aos ataques, souberam lhes responder com alguma dignidade. Houve pensamento crítico e discussão, não um sufocamento.

Até certo ponto, a diferença do que ocorreu nas duas linguagens se deve a suas especificidades inerentes, que devem ser consideradas para não concluirmos levianamente que por quatro ou cinco décadas os artistas se mostraram todos estúpidos e os escritores mantiveram-se inteligentes. Para causar os mesmos danos que os antiartistas visuais, um escritor teria que ser dez vezes mais teimoso e ortodoxo que um pós-moderno típico das galerias de arte. Dificilmente ocorreu aos escritores medianos se “esmerar” tanto nessa tarefa, ao passo que para os artistas medianos a tentação de seguir a corrente não exigia um esforço descomunal. Era quase inevitável que nas artes visuais a crise fosse às últimas consequências, ao passo que na literatura era pouco provável. Mesmo com a sentença de Adorno de que não se poderia fazer poesia depois de Auschwitz, poucos conduziram tal ideia com o mesmo rigor com que a arte visual efetivamente buscou matar a pintura.

Há diferenças nos desdobramentos da crise da representação nas duas linguagens que são da ordem do próprio meio. A palavra escrita reivindica algum distanciamento em relação ao referente: mesmo os poetas concretos ainda remetem, ainda constroem, não reduzem a poesia à concretude pura e simples. A arte visual, por sua vez, pode se misturar mais peremptoriamente ao espaço do cotidiano, pode se misturar com maior concretude ao plano "da vida". Seria muito difícil, mesmo para o mais corrosivo antipoeta, se sair bem numa sabotagem totalizante contra a poesia; mas um antiartista mediano pode ser muito eficaz na sabotagem contra a pintura. Para tanto, opera em nível cognitivo, promove a refratariedade do olhar de modo a atacar diretamente as obras dos colegas. Na arte visual, o ready-made utilizado como arma rompe drasticamente com o ilusionismo, fazendo a arte subsumir, mas na literatura, não vemos ready-mades tão mordazes, não seriam tão convincentes. O que pareceu atraente na antiarte visual foi a suposta fusão entre arte e realidade, como se para “fazer ver o mundo” bastasse destruir as molduras. A escrita, por sua vez, sempre alude ao mundo, não trabalha com esse “fazer ver” diretamente, mas com memória, imaginação, referência. Assim, nem nem Beckett, nem Robbe-Grillet nem Blanchot, nem os escritores mais "antiartistícos" deixaram de oferecer alguma coisa interessante, pois sua maior desconstrução ainda teria de ser construída. Levemos em conta que em uma exposição coletiva de arte visual, uma única obra “zoom out” acaba interferindo na leitura de todas as obras que compartilham o mesmo espaço. Em uma coletânea de contos ou de poemas, os ataques não têm o mesmo alcance – não é tão forte a sensação de definitivamente matar todos os escritores anteriores, menos ainda a preocupação de ser derrotado caso não se siga a mesma tendência. Mesmo no caso de guerra, na literatura não se usam "armas nucleares".

Além das diferenças próprias da linguagem, houve, sem dúvida, fatores que se explicam melhor pela História de cada uma das áreas. Na literatura moderna, o grande nome foi Joyce; nas artes plásticas, acredita-se que tenha sido Duchamp. Se Joyce promove uma explosão da palavra, liberando-a, Duchamp promove uma implosão da arte, tolhendo-a. Duchamp, mesmo que levante muitas questões pertinentes, quando tomado como paradigma absoluto tende a minar a autonomia da arte. A arte se retrai tanto que já não se pode mais percebê-la, e é então que muitos artistas deliberadamente deixam de criar arte. A reiteração do duchampianismo não permitia muita margem de manobra, o único caminho que parecia levar mais longe era o da indistinção crescente entre arte e realidade. James Joyce também provoca uma sensação de que algo não poderá jamais ser superado, mas ao menos é a linguagem em plena potência. Guimarães Rosa e Faulkner, por exemplo, tomaram-no como mestre e possibilitaram variações ricas, prenhes de uma indubitável crença na força da literatura.

É importante também apontar as diferenças econômicas nos meios de arte e de literatura, que não poderiam deixar de influir em seus desdobramentos. O artista visual tem perspectiva de enriquecimento rápido. Pode ou não acontecer, mas está em seu horizonte. O escritor, em especial no Brasil, ou se rende à auto-ajuda, ou realmente tem que acreditar em sua paixão pela palavra para seguir sua trilha. Se enriquecer, será após muitos sacrifícios, e quase como um acidente de percurso, de tão improvável. O escritor sofre para pagar as contas, mas há um ganho para sua obra, pois se vê que, nas artes plásticas, o excesso de dinheiro se tornou um problema bem concreto. O artista visual precisa se haver, por um lado, com as tentações do oportunismo milionário, e, por outro lado, com a culpa pelos ganhos exagerados e/ou a inveja de seus colegas pelos ganhos díspares. A culpa e a inveja explicam muito do maniqueísmo, do niilismo, da dessensualização e até mesmo do apego excessivo pela auto-referência em obras de artes visuais. Mesmo aquelas dezenas de artistas plásticos geniais do início do século XX beneficiaram-se por não obter um sucesso imediato. Para um criador sincero – supondo que ainda existam – há de ser confuso constatar que, por melhor que seja sua obra, o preço nos leilões é tão alto que o valor monetário ofusca seu valor artístico. Quando se tem a impressão de que a crítica é especulação financeira, ou que o mercado de arte não é mais do que casa de apostas, surgem dúvidas quanto a capacidade de um trabalho oferecer qualquer resistência. Tal consideração leva muitos a perderam a crença na arte e insistirem na tentativa de sabotar o circuito. O problema é que o mercado é igualmente histérico, e tem saboreado esses contra-ataques com avidez atordoante. Quanto ao escritor, geralmente não precisa sequer lidar com tais desgastes, pois o dinheiro não lhe aparece com a mesma preponderância sobre seu fazer artístico.

                Real e Irreal

Talvez seja profícuo, no entanto, deixar um pouco de lado o rancor contra os artistas plásticos e investigar se em algum momento, ao menos alguns deles, não estariam decisivamente tentando algo, tentando chegar a algum lugar pouco conhecido. Não é nada fácil dizer um por um quem estava sendo sincero e quem agiu com tal empenho, mas, tomando a antiarte como um todo, uma das interpretações cabíveis é a de que foi um salto sem proteção. Ainda que tenha sido desastroso, ainda que tenha resultado no oposto do que se pregou, pode ser instigante pensar o que os motivou a dar o salto - e por que se esborracharam mais do que os escritores.

Um dos conceitos mais instigantes de Lacan é o Real, que, longe de se equivaler à realidade que compartilhamos, é aquilo em nós que resiste a qualquer significação. É nosso lado mais primitivo, anterior à linguagem adquirida. Apesar de inacessível, é o que temos de primordial e de mais "puro". Lacan disse que o Real não mente, afinal é anterior ao jogo das convenções. Contudo, apesar de ser a fonte de impulsos que nos agitam, só temos acesso ao Real indiretamente.

Podemos nos indagar se não houve uma tentativa, por parte dos artistas visuais, de se atingir esse Real. É a análise elaborada por Hal Foster, em um de seus momentos mais inspirados, no livro The Return of the Real. Desde Andy Warhol, haveria uma luta para se chegar ao que está atrás de qualquer representação, sem anteparos, sem a cultura como mediação.  Por isso a fúria contra a arte, por isso a destruição das imagens, por isso a descrença de que a arte pudesse dizer alguma coisa. Nas suas serigrafias de acidentes de carro, Warhol apresenta algo que nos leva a pensar nesta direção. A repetição das imagens acaba por gerar um desgaste, um esvaziamento da cena registrada. Com isso, Warhol nos mostra a impossibilidade de a imagem se colar ao referente, de significar o significante. O que ele sugere é que vejamos, não o que está na série apresentada, mas o que lhe escapa, o que vai no intervalo. Ele nos induz – assim como Brecht, Godard e outros desconstrutores – a admitirmos que toda linguagem é artifício, e que com ela vêm muitas armadilhas. Em qualquer discurso, do mais corriqueiro ao mais complexo, os signos nos são impostos, têm algo de adestramento, nos separam de nossos instintos mais pulsantes. O Real seria o que pisca “entre” uma e outra imagem, pois não se pode capturá-lo. Se lhe damos forma, não é mais o Real – podemos  apenas senti-lo pela tangente.

Muitos escritores também se lançaram em uma investigação quanto a esse ponto-limite da linguagem – é o que vemos, por exemplo, na última fase de Clarice Lispector, ou na poética do fracasso de Beckett. Arte é linguagem, portanto "superar" a arte, aniquilando-a, poderia nos situar mais próximos desse universo aquém e além das palavras, poderia nos mostrar algo selvagem, aquilo que não foi imposto pela cultura. O Real não é a realidade, é o âmago. Na trajetória de Clarice vemos que para avançar na busca incessante pelo âmago, ela se encaminha para uma metalinguagem radical, ameaçando constantemente uma ruptura com o ilusionismo. O mesmo em Beckett. A inteligência deles é a de ir até o limite e recuar no último instante. Não por covardia, mas por verem que não é possível mais do que ricochetear o Real. De outra maneira, o Real não é apreensível. A cada novo golpe é preciso retomar a linguagem metafórica, o único instrumento de que se dispõe para tal tarefa. Lacan deixa bem claro: “só se tem acesso ao Real pela fantasia”.

Enquanto Warhol nos convidou a entrever o Real, entre uma e outra repetição, ele foi contundente. Ricocheteava–nos entre uma imagem e outra. No entanto, quando  simplesmente desloca um objeto cotidiano para o espaço “da arte”, como as sopas de tomate, perde a sutileza e a eficácia, pois o objeto real nunca é o Real. É o mesmo erro de muita arte minimalista e conceitual. Tais artistas visuais, ao apresentarem tautologicamente a realidade em vez da arte, talvez quisessem minar esse último véu de ilusão que Clarice e Beckett ainda mantinham. A  ingenuidade dos minimalistas foi crer que poderiam, não apenas nos deixar entrever, mas de fato instalar o Real, trazê-lo puro e imediato. Por mais que tenham se empenhado, só provaram para nós que isso é impossível.

 Admiro Clarice justamente porque ela brinca com a loucura, testa os limites, aproxima-se o máximo que a escrita lhe permite do inominável. No entanto, ela o faz por metáforas, aproximações. Ela usa a poesia como um espelho oblíquo que ajuda a localizar o Real. Aí está a sabedoria que faltou a muitos antiartistas: eles acreditaram que fosse possível atingir plenamente o que é por princípio inatingível. Acharam que poderiam desmantelar a linguagem a ponto de fazerem coincidir a realidade e o que estivesse “fora da linguagem”. Acreditaram que uma realidade supostamente despida da linguagem poderia nos conduzir ao Real.  Porém, tanto isso é impossível, que a arte pós-moderna requer abusos de retórica, um discurso pesado e delimitador - ou seja, jamais a antiarte ficou nua, jamais esteve sem linguagem. O Real nos acompanha a todo instante, mas a única maneira de se olhar para ele é por um espelho oblíquo. A arte é justamente um espelho torto que, ao nos desviar da vida para a não-vida, desvia o Real para o terreno da linguagem. O Real da vida é inatingível, mas o Real da não-vida, o Irreal, esse nós podemos sentir. A arte toma distância estratégica da vida porque somente com o auxílio do Irreal podemos vislumbrar o Real.


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